Por ao menos quatro noites, deu para viver tudo de novo. Afinal, os três senhores que ressurgiam no palco do Royal Albert Hall podiam até ter os cabelos tingidos, mas as rugas já eram profundas o suficiente para contar uma saga de 100 anos. Eric Clapton veio do fundo de um palco escuro improvisando um solo de blues. Jack Bruce fez o mesmo com seu baixo. E Ginger Baker, o último a aparecer, passou rápido pelos tons da bateria. Dois segundos e tudo mudou. Clapton tocou as onze notas do riff de Sunshine Of Your Love e a plateia do templo inglês foi violentamente jogada em algum pub de 1966.
Era 2005 quando o sonho se refez. Clapton sorrindo para Baker, Baker brincando com Bruce e Bruce sorrindo para Clapton. O Cream foi assim, uma viagem às estrelas de três anos, quatro discos, mil notas e um homem lendário morto no último sábado: Jack Bruce. O baixo mais livre do rock, que parecia ser tocado por um jazzista, desenhou o conceito de power trio à base da completa falta de base. Apenas baixo, guitarra e bateria, com cada um fazendo o que bem entendesse. Além da voz elástica, Bruce não se importava em segurar graves para conduzir os solos de Clapton solava. Sem timidez, ia para os agudos solar também.
O conceito de ‘free rock’ do escocês não foi fruto do acaso. Antes que suas ideias colidissem com a dos professores e ele se retirasse da vida acadêmica, estudou na Bellahouston Academy e aprendeu violoncelo na Royal Scottish. O contato com o instrumento sinfônico pode explicar seu casamento com os baixos fretless (sem divisória, com o braço liso). Antes do rock, tocou jazz e viveu na Itália vendendo o almoço para pagar o jantar. Em 1962, passou a fazer parte da Alex Korner’s Blues Incorporation em formações com Charlie Watts, baterista que logo integraria uma banda com jeito para o negócio chamada Rolling Stones, e com um ruivo mal-encarado chamado Ginger Baker.
Antes do ápice do Cream, Bruce deu mais dois passos em direção ao blues ao trocar Alexis Korner pela Graham James Bond, que tinha Graham Bond no orgão, o futuro jazzista John McLaughlin na guitarra e Ginger Baker na bateria. As faíscas que os fios desencapados de Bruce e Baker soltavam nos ensaios viraram incêndio e Bruce levou a pior. Além de ser ameaçado por um Baker furioso empunhando uma faca, foi demitido da banda.
Marvin Gaye o convidou para assumir o baixo de sua sessão rítmica, mas os deuses intervieram e Bruce disse não. Além de ter zero de groove soul nas veias, a convivência de ambos tinha tudo para ser trágica. Em 1º de abril de 1984, o pai de Gaye discutiu mais uma vez com o filho e o matou com um tiro de calibre 12.
Um tempo depois e Jack Bruce foi tocar com John Mayall e seus Bluesbreaker’s ao mesmo tempo em que um inglês caladão fazia solos por lá. Eric Clapton. Aí foi questão de tempo para que os planetas se posicionem. Clapton deixou Mayall para formar um trio. Chamou Bruce, o baixo mais ousado da Inglaterra, e Baker, já um gigante em seu instrumento. Baker e Bruce fizeram as pazes, ao menos, por um dia.
Se para Clapton o Cream era um ponto de evolução em sua linha do tempo, para Bruce era o fim dela. Por mais dignos que sejam suas criações posteriores, jamais voltariam a ter a mesma força. O álcool e as drogas mandaram a fatura nos anos 1990 e seu fígado arriou até que um transplante foi feito em 2003. “Só digo que tenho muita sorte de ter sobrevivido”, disse ao jornal O Estado de S. Paulo em 2012.
Na manhã de sábado, 25, seus familiares se reuniram para redigir a notícia que não esperou por uma novo encontro do Cream: “É com grande tristeza que anunciamos a morte de nosso querido Jack: o marido, o pai, o avô e a lenda”.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.