‘Ixcanul’ e os abismos sociais na Guatemala

“O que vem atrás do vulcão?”, pergunta uma garota ao rapaz. Ele responde: “Depois do vulcão, vêm os Estados Unidos. É verdade que ainda tem o México pelo meio…”.

O diálogo pertence ao filme guatemalteco Ixcanul Volcano, de Jayro Bustamente, que venceu o valorizado prêmio Alfred Bauer no Festival de Berlim. Ninguém vai negar razão a quem alegar que jamais ouviu falar de cinema da Guatemala. Verdade, a produção é pequena e viaja pouco. Mais um motivo para ver esse filme, que é uma beleza.

Primeiro mérito de Bustamente, que provavelmente foi decisivo para a conquista do Bauer: retrata a pobreza, mas sem “miserabilismo”. É vacinado contra a ideologia do olhar que, em nome de uma suposta solidariedade, despoja os personagens de sua condição de sujeitos da sua história e os converte apenas em motivo de piedade.

Em Ixcanul, pelo contrário, temos personagens em situação de muita pobreza, mas que tentam, de todas as formas, tomar seus destinos em mãos. A começar por Maria, que vemos, na primeira cena, sendo preparada para um casamento que, logo descobrimos, interessa à sua família, mas não a ela.

A família de Maria trabalha em terra alheia, numa plantação de café. É emprego temporário. O casamento pode estabilizá-la na região. No entanto, Maria ama Pepe, o rapaz que sonha com o que existe para além do vulcão – no limite, os Estados Unidos, a Terra da Promissão, onde o dinheiro brota em árvores, embora o mais provável, caso consiga atingir sua meta, seja trabalhar na lavagem de pratos e de banheiros. Pepe vai seguir seu destino, enquanto os outros lutam para sobreviver na franja do vulcão.

Há como essa onipresença do vulcão na vida das pessoas. Elas cultivam em suas encostas. Vivem sujeitas aos seus humores, à sua fumaça e à hipotética lava. O vulcão é também uma espécie de deus para os nativos (que se exprimem sempre em seu idioma e, quando precisam se comunicar com gente de fora da comunidade, que fala espanhol, necessitam de intérpretes). A religião dos nativos passa pelo vulcão. A ele, e aos deuses a ele associados, devotam suas oferendas. É profunda a relação dos nativos com a geografia de sua região e com as condições de vida que ela oferece e condiciona.

Nem por isso, quando tiverem um grave problema de saúde a resolver, apelarão para os deuses. Ou apenas para eles. Quando nada funciona, é hora de descer a encosta e recorrer ao que a sociedade dos homens brancos tem a oferecer. Como se o ponto de vista do diretor desalojasse a ação do filme dessa visão mística do vulcão, a vida idílica e “natural” dos camponeses, como se deixá-lo entregues à própria sorte fosse uma forma de respeitar sua cultura. Existem as crenças e existe a sociedade dos homens e sua estrutura injusta. Para mover-se nesse labirinto, a fé parece insuficiente. E mesmo inútil. Desse modo, quando aparecer o fundo de crítica social, este será por completo separado de qualquer crença religiosa. Ao lidar com a exploração no trabalho, e com os problemas de saúde, os camponeses são confrontados à realidade material – injusta e, no limite, propensa ao crime.

Como se os desníveis sociais se infiltrassem na trama de maneira natural, sem forçar a barra. A partir de um caso de amor de consequências, aliás, bastante previsíveis, a família de Maria é jogada numa espiral de problemas, que assumem forma trágica sem que os agentes possam fazer o que for para evitá-la.

Bem que eles tentam. A mãe de Maria é uma mulher ativa e lutadora. Tenta proteger a filha por todos os meios ao seu alcance. E eles não são muitos. Na cidade, a barreira de idiomas revela-se decisiva. Ela fala em sua língua para médicos e autoridades policiais que se expressam em espanhol. Mas esse quiproquó linguístico apenas expressa o que existe de mais radical na diferença entre pessoas no interior de uma mesma sociedade.

Bustamante adota um estilo de filmagem bastante denso. Fotografia em tons escuros, filmagem em luz natural, sem qualquer ranço de estética publicitária. Mesmo porque essa seria uma traição à ideia central que comanda o filme: o registro solidário de uma situação social de desigualdade extrema, porém sem o adoçante da caridade beata. O estilo é seco e conciso.

Ixcanul parece uma nova modalidade de filme social latino-americano. Não abdica de sua autenticidade. Trabalha com atores naturais e não com elenco profissional. Respeita a identidade linguística e cultural dos personagens. Observa suas condições extremas de sobrevivência com compaixão, porém com

E vai além do registro piedoso dos usos e costumes populares. Mostra como as estratégias de sobrevivência se revelam frágeis no contato com os setores dominantes da sociedade. Entre a fé e a organização racional das coisas, esta é que leva a vantagem. Mesmo porque é administrada como forma de poder, à qual os despossuídos não têm acesso.

O círculo infernal (porque a narrativa torna-se circular) mostra como é difícil sair dessa situação. A ameaça não é o vulcão, com sua presença ameaçadora e o solo hostil no qual rastejam serpentes. A ameaça aos pobres vem de outra parte e não se extingue com rezas e oferendas aos deuses do fogo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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