Quando se cansava ou precisava relaxar, o músico e compositor Itamar Assumpção saía de sua casa e caminhava pelas ruas da Penha “para comprar cadernos”, diz a filha do artista, a cantora e compositora Anelis. Paulistano nascido em 1949, o músico rebelde, chamado de vanguardista – apesar de sua desaprovação -, ganha homenagem no ano que completaria 70 anos, com o espetáculo Pretoperitamar – Uma Preta Opereta, que estreou dia 28 de novembro, no teatro do Sesc Pompeia.
Um projeto para o palco era desejo antigo da família do artista. Após sua morte, em 2003, ações de homenagens e lançamentos prestaram tributo a Itamar. Neste ano, sua música foi lembrada no palco da Virada Cultural e os discos Beleléu, Leléu, Eu e Às Próprias Custas S/A foram reeditados. “Há muito material ainda inédito, composições e músicas gravadas voz e violão”, diz Anelis.
Mas antes de iniciar mais um projeto musical, o palco parecia chamar mais alto. “O primeiro contato que ele teve com a arte foi por meio do teatro. Ser ator influenciou sua musicalidade, suas composições e a vontade de narrar histórias”, afirma Anelis.
O estudos no palco começaram em Londrina (PR), quando se mudou com a família. Itamar já tinha tentado ser jogador de futebol e cursar contabilidade, mas a intimidade com o violão foi mais profunda. Na época dos grandes musicais, Itamar despontou com Arrigo Barnabé, a quem cantou os versos “Onde estará Arrigo Barnabé?/Atrás da estátua do Borba Gato”, e os expoentes do Teatro Lira Paulistana. Arrigo tem participação especial no espetáculo.
Entre 1980 e 1986, Itamar grava três discos, Beleléu, Leléu, Eu, com a banda Isca de Polícia, Às Próprias Custas S/A e Sampa Midnight. O estilo bem-humorado das letras e a fusão com o rap e reggae se juntaram ao tom contestatório de Nego Dito: “Se ‘chamá’ polícia/Eu viro onça/Eu quero matar/A boca espuma de ódio/Pra provar pra quem quiser ver e comprovar”.
Para a atriz e dramaturga Grace Passô, que assina o texto com Ana Maria Gonçalves, a obra de Itamar se mostra um universo vasto de exploração. “Ele foi como uma grande gramática e em si um discurso de liberdade. Itamar carrega um nível de inventividade que atravessa as linguagens, como eram suas apresentações, marcadas pela performance.”
No palco, atores e músicos contam uma história de outros tempos. No dia em que Itamar morre, o artista faz uma viagem para o futuro. E, em 2019, um grupo parte para encontrar Nego Dito e trazê-lo para os festejos de seus 70 anos. Segundo Anelis, a obra do pai alimenta a cena com a dedicação incansável de um artista. “Em seus cadernos, por exemplo, ele desenvolvia ideias sobre como uma planta pensaria e se expressaria, também fazia esse exercício com animais, formigas.”
Em Pretoperitamar, além de apresentar um artista contemporâneo para as novas gerações, o espetáculo também busca deslocar pontos de vista sobre os rótulos que Itamar recebeu no passado. “Como outros artistas, foi chamado de maldito e ser considerado marginal são coisas impostas”, diz Anelis.
Por outro lado, a criatividade pulsante e a companhia de artistas de sua geração o colocou no time elogioso da Vanguarda Paulistana, termo que também pode ser questionado. “Ele sempre reclamou”, diz Anelis. “Uma palavra de origem francesa, europeia, para denominar um artista negro. É uma lobotomia, que nos apaga, que apaga nossas origens. É como se a gente precisasse inventar outras palavras para existir.”