Todo ano é a mesma coisa. A gente acha que perdeu tempo demais vendo filme ruim e, quando vai fazer a lista dos melhores, falta espaço para colocar tudo o que se quer. Melhor assim. Prova de que, numa cidade cinéfila como São Paulo, os filmes de qualidade ainda têm vez, mesmo entre os escombros deixados no circuito pelos arrasa-quarteirões da vida, que Hollywood despeja sem piedade sobre as nossas cabeças a cada ano da graça do Senhor.
Na opinião deste crítico, há dois ápices no cinema de 2005 – "Irmãos", o intenso drama do francês Patrice Chéreau, e "Manderley", a politizada continuação da trilogia do dinamarquês Lars Von Trier sobre os Estados Unidos. O primeiro é um filme da intimidade, dos laços viscerais que unem – e também separam – dois irmãos. Poucas vezes o mistério das relações familiares (essa viagem através da carne, como dizia Drummond) se viu retratado com tanto calor e inteligência emocional como neste filme de Chéreau. Já "Manderley" é a continuação das investigações de Von Trier sobre os fundamentos da sociedade americana. Desta vez ele elege o período após a abolição da escravatura naquele país. Para Von Trier, a História não é uma abstração, é nela que se constroem os alicerces do futuro de uma sociedade. E, pelo que se vê, o fundamentalismo que dá base ideológica para a invasão do Iraque, por exemplo, não é uma invenção recente de Bush. Está inscrita no coração da América, ou melhor, em seu DNA.
Fazia tempo que um filme italiano tão sólido como "Bom Dia, Noite" não chegava ao Brasil. Marco Bellocchio, cineasta que era cult anos atrás, ressurge com essa livre interpretação de um dos fatos históricos traumáticos da Itália nos anos 1970 – o seqüestro e assassinato do democrata-cristão Aldo Moro pelos extremistas das Brigadas Vermelhas.
Da França também veio outro exemplar da melhor safra – o comovente "Reis e Rainha", em que Arnaud Desplechin explora as nuances de um relacionamento entre pai e filha. E de outra parte da Europa, o português "Um Filme Falado" mostra um Manoel de Oliveira em plena forma. Ele, que é o mais idoso cineasta em atividade (completou 96 anos e veio a São Paulo para a Mostra de Cinema), mostrou que compreende como poucos os impasses da globalização, e sabe que a luta atual é a da civilização contra a barbárie, mas não à maneira como a entende Bush. Neste belo "filme falado", o que conta é a convivência humanística dos diferentes e não a imposição de uma civilização sobre a outra. Nessa linha de elogio à diversidade, mas em registro oposto, vimos o intenso e rítmico "Exílios", de Tony Gatlif.
Da Argentina veio a excelente continuação de carreira de Lucrécia Martel, com "A Menina Santa". A cineasta já havia mostrado seu talento com "O Pântano", e prossegue agora sua investigação sobre a vida familiar da classe média argentina. Seu estilo inclui certo distanciamento brechtiano somado a uma estética da crueldade que às vezes faz pensar na herança de um Buñuel. Falta, no entanto, o humor de Dom Luis, mas isto não é coisa que se aprenda no colégio.
Com "A Menina de Ouro", Clint Eastwood faz seu filme mais intenso dos últimos anos, interpretando ele mesmo o velho e amargurado treinador de boxe que concorda em dar orientação a uma novata. Implacável consigo mesmo, Clint mostra o quanto conseguiu, na maturidade, distanciar-se do cinema comercial que praticava quando jovem. David Cronenberg traz mais um filme surpreendente, em registro que não lhe é muito habitual, o realista. Só que, neste caso, o realismo se revela a maneira mais inquietante de contar essa história de um criminoso que mudou de vida e defende seu novo caminho a qualquer custo.
O cinema oriental também esteve bem representado nas telas da cidade, em filmes como "Ninguém Pode Saber , do japonês Kore-Eda Hirokazu, e "Casa Vazia", do coreano Kim Ki-duk. São opções estéticas de muita delicadeza. Num caso, contando a história de crianças obrigadas a viver clandestinas em uma casa. E, no segundo, colocando em cena exatamente um doce invasor de residências, que se aproveita da ausência dos moradores, dorme, realiza pequenos consertos e vai-se embora. São filmes simples, de invenção, muito sutis e que nos transmitem a sensação de algo novo, que não havíamos visto antes.
Brasil
Muita gente ficou preocupada (mas também houve quem ficasse contente) quando pareceu que o cinema brasileiro iria ter um ano magro em 2005. No fim, não houve desastre nenhum. Em termos proporcionais, o cinema nacional repetiu seu desempenho de bilheteria de 2004, fato omitido em algumas análises suspeitas. O que houve foi a queda de receita do cinema como um todo e não apenas do brasileiro, que continuou com cerca de 14% do mercado interno, porcentagem semelhante à de 2004.
Mas o mais interessante foi a qualidade, que surgiu em especial nos filmes lançados já no final do período. "Cinema, Aspirinas e Urubus", de Marcelo Gomes, e "Cidade Baixa", de Sérgio Machado, são títulos que dignificam qualquer cinematografia, embora alguns "gênios" tenham pichado o primeiro queixando-se de falta de dramaturgia ou coisa que o valha. Bem, o filme de Marcelo Gomes não ganharia um prêmio Syd Field de roteiro (se isso existisse), mas cria o seu próprio estilo dramatúrgico para contar, em tom menor, um curioso relacionamento de diferentes que acontece no sertão nordestino. "Cidade Baixa" opta por outra chave narrativa, a da intensidade ao falar de um triângulo amoroso entre dois barqueiros e uma prostituta. É o filme mais hormonal do ano, e isso se deve, em boa parte, à estreante Alice Braga, sobrinha de Sonia Braga.
Outra história de relacionamento entre diferentes – esta no âmbito político – é "Quase Dois Irmãos", de Lúcia Murat. Fala da história recente do Brasil, mostrando a amizade entre um rapaz do morro, que vira traficante, e um filho da classe média, que se torna militante político. As cicatrizes desse Brasil, que tem dificuldades para se encontrar e para definir sua identidade a cada fase de sua história, recebem aqui um tratamento dilacerado, trágico, profundamente humano, num filme de grande beleza e verdade.
Devemos lembrar que, mais uma vez, os documentários tiveram papel importante neste ano que se encerra. O trabalho de mapeamento do real (muitas vezes realizado com técnicas de ficção) se mostrou um veio rico, que continua a ser explorado cada vez mais pelos cineastas. Escolhemos um, que sobressai por sua qualidade e também por ser obra de um mestre, Eduardo Coutinho. Em "O Fim e o Princípio", Coutinho vai ao interior da Paraíba e lá descobre (e mostra ao espectador) a complexidade e a riqueza da existência de velhos camponeses. Comovente, mas também lúcido.
Por fim, o cinema brasileiro pode festejar o lançamento de um bonito filme popular como "2 Filhos de Francisco", de Breno Silveira, e ninguém precisa ser fã da música de Zezé Di Camargo e Luciano para embarcar na história desse pai sertanejo que sonha o sucesso para seus filhos. É um filme singelo, feito com honestidade e emoção. Comoveu muita gente, atraiu mais de 5 milhões de pessoas aos cinemas, e, como se poderia prever, continuou sob desconfiança da parcela mais elitista da crítica. Você não faz uma cinematografia só com Julio Bressane ou Rogério Sganzerla – que aliás teve seu "Signo do Caos" lançado postumamente este ano.