Seu partido era o dos pobres. Para defendê-los, Irmã Dulce estendia a mão não importava a quem. Regina Braga, que a interpreta num filme que está sendo feito nas Bahia, conta: “Um dia ela foi pedir ajuda a um empresário que cuspiu em sua mão. Irmã Dulce não se abalou. Limpou a mão e disse. Isso foi pra mim, agora a ajuda pros meus pobres”. São muitas, inúmeras, incontáveis, as histórias sobre a religiosa baiana que ganha direito a longa para ser lançado ainda este ano, quando se comemora o centenário de nascimento de Irmã Dulce.
Regina Braga se reveza com Bianca Comparatto no papel. Bianca faz a jovem Irmã Dulce, até os 45 anos. Regina a interpreta dos 45 anos 70 e poucos. Irmã Dulce era pequenininha e no fim da vida, com apenas 30% da capacidade pulmonar, mal conseguia respirar. Era encurvada. Como se interpreta uma personagem assim? “Ainda estou aprendendo. É um aprendizado físico e emocional diário. Fiz pouco cinema, e até isso estou aprendendo. Vicente (Amorim, o diretor) está sendo ótimo conosco. Estou muito feliz de poder contar essa história. O Brasil, mais do que nunca, precisa do exemplo de Irmã Dulce e seu Partido da Pobreza, como ela dizia.”
Apesar da proximidade do mar, o calor é insuportável. A área conhecida como Aeródromo de Salvador é um imenso descampado de duna, com raríssima vegetação. É aqui que, nesta sexta-feira, está sendo filmada uma cena essencial de Irmã Dulce. O longa dirigido por Vicente Amorim é produzido por Iafa Britz. Os cínicos dirão que ela está fazendo tudo por dinheiro. Embora não seja uma judia ortodoxa, Iafa segue os preceitos religiosos. Jejua, comemora o Pessach. Chegou a se conectar para participar das festividades do último, já durante seu atual período em Salvador.
Um judia que produziu um filme sobre espiritismo (Nosso Lar) e agora resgata um ícone cristão do Brasil. Tudo por dinheiro? “Não, não é só o dinheiro”, ela responde. Nosso Lar foi um projeto que caiu sobre ela, mas Irmã Dulce, não. Iafa foi atrás, a partir de uma conversa com Samuel Wainer, da Downtown, parceira da Migdal, a empresa de Iafa, no projeto. “Nosso Lar permanece comigo. Existem questões ali, sobre a vida após a morte, que me tocam muito. E Irmã Dulce é uma guerreira. O que essa mulher fez pelos pobres é o que acho que gostaria de fazer pelos filmes. Filmes diversos, que reflitam nossa gente, nossa cultura. Uma vez que você se envolve com Irmã Dulce, nunca mais larga dela. Irmã Dulce entranha na gente.”
Iafa Britz, pan-religiosa? A própria Irmã Dulce era. “Isso aqui é a Bahia, gente. Tem uma cena no filme que acho genial. O encontro dela com Mãe Menininha do Gantois. Quem faz a mãe é uma atriz do Rio. O sincretismo é total.”
O próprio set nesse dia de calor infernal parece sob medida para ilustrar uma tese de sincretismo cultural e religioso, mas é pura realidade. Em 1980, quando o papa João Paulo II esteve pela primeira vez na Bahia (e no Brasil), ele rezou uma missa no aeroclube. A cúpula da Igreja Católica fez o que pode para esconder Irmã Dulce do papa, mas ela foi, como fiel, e, reconhecida pela multidão que chamava seu nome, roubou a festa do próprio pontífice. O papa virou coadjuvante de Irmã Dulce.
É essa cena que está sendo filmada. Uma multidão de 500 pessoas diante de um palanque montado no meio do nada. Atrás dos figurantes, um telão verde. Por meio de efeitos especiais, eles serão multiplicados para se transformar nos 500 mil que participaram da missa naquele dia. Os figurantes usam trajes de época – muitos homens de terno, mulheres de mangas longas. E os religiosos. O papa, o arcebispo, dezenas de integrantes das mais diversas ordens. Padres, freiras, capuchinhos. Todos transpirando debaixo daquele sol inclemente. Não é fácil filmar cenas de multidão. Vicente Amorim acompanha pelo monitor. Exorta o público a olhar para o local em que está a substituta de Irmã Dulce, o substituto do papa. As pessoas se distraem. Olham para todos os lados, não gritam como ele quer o nome de Irmã Dulce.
Ele repete e repete, em busca de rostos selecionados entre o numeroso público, captado por meio de travelings laterais. E repete mais uma, duas vezes, agora com a própria Regina Braga, o corpo coberto pelo hábito, no alto do palanque.
Vicente Amorim chegou ao projeto há cerca de um ano. Desde então, tem respirado Irmã Dulce. Leu tudo sobre ela, fez as próprias pesquisas iconográficas. Não importa se é religioso ou não. Importa que acredita em Irmã Dulce. “Essa mulher teve uma energia, uma força de vontade excepcional. Quando a Iafa me propôs, fiquei meio cético. Um filme hagiográfico? Mas depois descobri que ela precisou lutar contra tudo e todos em defesa dos seus pobres. Contra a oligarquia, a cúpula da Igreja, contra a própria saúde. Foi uma lutadora.”
Brasil na marra
Filho do embaixador Celso Amorim, Vicente nasceu na Áustria e viveu nos EUA. Ele próprio reconhece que se fez brasileiro na marra, por amor ao Brasil. Sua filmografia o reflete, mesmo que, eventualmente, tenha feito filme no estrangeiro – Um Homem Bom, com Viggo Mortensen. No Brasil, estreou com 2000 Nordestes e fez O Caminho das Nuvens, Corações Sujos e, agora, Irmã Dulce. Na TV, faz um episódio da série As Canalhas e assina as ligações dos episódios de Rio Eu Te Amo (ainda inédito). Onde é que Irmã Dulce entra nessa história? Uma família que atravessa o Brasil pedalando, imigrantes japoneses que se recusam a aceitar a derrota do Japão e formam sociedade secreta, um homem comum confrontado com a loucura do nazismo.
“Acho que o que me atrai são as histórias reais, de gente de verdade que enfrenta a adversidade.” Ele está encantando com Irmã Dulce, com a equipe, com o roteiro (de L.G. Bayão e Anna Muylaert), que teve mais de dez versões. A história vale-se de um personagem ficcional – um João que representa as centenas, milhares de crianças que Irmã Dulce adotou, e a quem ofereceu um futuro. É uma produção grande, de R$ 9 milhões. “Não temos nenhum patrocinador master. Um monte de gente e de empresas está contribuindo por meio da renúncia fiscal. A própria produção está sendo um grande esforço coletivo, como Irmã Dulce fazia. Essa mulher é um exemplo. Só contar sua história não basta. É preciso paixão, e eu nunca vi um set mais apaixonado”, define Iafa Britz. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.