Ele era criança quando os primeiros automóveis e aviões atropelaram o passado e anunciaram o futuro do século 20. Testemunha privilegiada de sua época, nascido numa família da alta burguesia francesa, Jacques Henri Lartigue (1894- 1986) nunca se considerou um profissional como o húngaro André Kertész (1894-1985) ou seu amigo americano Richard Avedon (1923-2004). Antes, definia-se como um fotógrafo recreacional, que jamais precisou trabalhar para comprar filmes ou câmeras, presenteados pelo pai desde seu sétimo aniversário. Mesmo assim, foi elevado à condição de “pioneiro da fotografia moderna” pelo curador do Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1963, data de sua primeira individual, aos 69 anos. E foi desse modo que passou à história e é homenageado na retrospectiva Jacques Henri Lartigue – A Vida em Movimento, que o Instituto Moreira Salles abre nesta terça-feira, 11, para convidados, e na quarta-feira, 12, para o público, em São Paulo.
Moderno por acaso ou não -, Lartigue registrou a velocidade que marcou o século passado. E começou cedo. Aos 18 anos, ele transformou o instantâneo reproduzido na foto maior esta página, de 1912, na mais popular entre as icônicas imagens de sua obra, reunida em 135 álbuns com tiragens originais diagramadas e legendas pelo próprio fotógrafo. Eles pertencem hoje à Donation Lartigue, uma associação de amigos do fotógrafo que ficou responsável por seu acervo, doado por ele ao Estado francês em 1979.
A curadora da mostra, Martine d’Astier, diretora da Donation Lartigue, selecionou com a ajuda de Elise Jasmin as 117 fotografias, vistas estereoscópicas, autocromos, filmes e fac-símiles de seus diários (mais de 7 mil páginas entre 1911 e 1986) que estão na exposição. Elas revisitaram a obra de Lartigue com foco em dois elementos caros ao fotógrafo: o ar e a água.
Lartigue começou sua carreira registrando as atividades familiares, especialmente as de seu irmão Maurice (apelidado Zissou), que gostava de correr com seu kart primitivo em volta do castelo da família, em Rouzat. Zissou gostava também de inventar protótipos de aviões, a exemplo de Santos Dumont. Lartigue registrou suas várias tentativas de voar, antes de cobrir competições de corridas de carro e descobrir as mulheres voluptuosas do Bois de Boulogne, que se tornaram para ele tão atraentes quando os carros velozes e os aviões. Velocidade, corrida contra o vento, gente pulando e dançando são os temas preferidos de Lartigue, que fez da fotografia um hobby, uma maneira de registrar o cotidiano de seu círculo de amigos com humor e liberdade.
Despretensioso, ele, contudo, não era descuidado. Acordava cedo, fazia exercícios físicos e consumia revistas de fotografia com a avidez de quem levava o hobby a sério. A foto maior da página, registrada com uma câmera ICA, criada em 1906 (mas ainda rápida para os padrões de 1912), foi estudava e dissecada por historiadores. Eles computaram à distorção da roda traseira do carro, que forma uma elipse oblíqua, a sensação de velocidade do carro. Mas teria sido essa deformação deliberada ou acidental? Lartigue, anos mais tarde, revelou que foi acidental. Olhou a foto, feita no dia 26 de janeiro de 1912, e ficou desapontado com seu enquadramento. Ele colocou a foto de lado e só em 1954, quando uma revista francesa de fotografia publicou uma reportagem histórica sobre os pioneiros do automobilismo, a imagem foi resgatada.
A liberdade de enquadramento e a paixão pelo movimento levariam Lartigue ao cinema, como fotógrafo de cena dos filmes de Abel Gance, Bresson e Truffaut. Muitas celebridades passaram por suas lentes, de Santos Dumont (ele registrou várias tentativas de voo do brasileiro) a Picasso. Mas é com amigos pulando diante de sua câmera, que traduzem a alegria efêmera, a felicidade empalhada do presente, que Lartigue gostaria de ser lembrado. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.