A criadora e encenadora Christiane Jatahy é uma leitora inquieta – quando saca alguma obra-prima da sua estante que vai inspirar um novo trabalho, o resultado é uma peça instigante, em que o texto escrito no passado é o ponto de partida para ela refletir sobre seu presente. Foi assim, por exemplo, em A Floresta Que Anda (2016), em que ela se apropriou de Macbeth, de Shakespeare, para refletir sobre como a relação gananciosa dos sistemas de poder está em torno de nós e nos atravessam direta ou indiretamente.

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Em sua incessante busca do melhor entendimento da alma humana, Christiane dá agora um passo fundamental em Ítaca – Nossa Odisseia I, que estreia quinta-feira, 26, no Sesc Consolação. Para se ter uma ideia do gigantismo da montagem, a encenação acontece em um ginásio adaptado. Não se trata, porém, de uma pirotecnia para apenas surpreender – é ali, em meio a cortinas imensas e respeitáveis estruturas metálicas, que a encenadora carioca conduz a plateia a uma viagem reveladora.

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Ítaca é inspirada em Odisseia, um dos principais poemas épicos da Grécia Antiga, atribuídos a Homero. Continuação de Ilíada, narra a tortuosa travessia de volta à casa de Ulisses que, terminada a Guerra de Troia, navega durante quase duas décadas em direção à ilha de Ítaca, onde é esperado pela amada Penélope. “Inspirada” é a palavra certa: Christiane constrói uma odisseia particular para refletir sobre o mundo. “A viagem de Ulisses traz aspectos que lembram os dramas dos refugiados, enquanto Ítaca traz um retrato simbólico do Brasil na medida em que os pretendentes de Penélope, enquanto negados por ela, travam uma luta destrutiva pelo poder”, conta Christiane.

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As duas tramas são apresentadas simultaneamente, separadas por uma enorme cortina. O público também se divide, em arquibancadas posicionadas frente a frente, com o palco no meio. Assim, enquanto parte da plateia acompanha a viagem de Ulisses, a outra se preocupa com Penélope. Quem conhece o inovador método de trabalho de Christiane Jatahy sabe que o espectador não vai conhecer a história pela metade, pois ela utiliza câmeras de cinema que projetam imagens ao vivo, oferecendo perspectivas distintas da trama.

Mas, ao contrário dos espetáculos anteriores, desta vez são os próprios atores que filmam em cena. Com isso, o público vê em ordens diferentes o que se passa em Ítaca e o drama da travessia para alcançar Ítaca, até que uma grande transformação cenográfica reúne todos no mesmo espaço.

O cenário marca o início da parceria criativa entre Christiane e o artista belga Thomas Walgrave, trabalho que tem um efeito direto nos corpos dos atores e na relação com o público. Como de hábito, tudo é criado para que o inesperado aconteça – se o início da peça é marcado por risos e bebidas, aos poucos a alegria cede espaço para as lágrimas. A água, portanto, é elemento essencial, brotando do chão e inundando o palco. Uma vez mais, Christiane Jatahy une artesanal com tecnologia, colocando os sentidos e o imaginário a serviço da inteligência.

E o elenco (as brasileiras Isabel Teixeira, Julia Bernat e Stella Rabello, que já trabalharam antes com a diretora, além do belga Cédric Eeckout e dos franceses Karim Bel Kacem, e Matthieu Sampeur) não atua com personagens fixos, representando as múltiplas possibilidades de Penélope, Ulisses, dos pretendentes e da ninfa Calipso. Como os diálogos são em português e francês, há o uso de legendas.

“A diferença de idiomas é importante, pois a língua é uma forma de poder, que promove distância e também atração, que permite uma aproximação ou um afastamento”, conta Christiane, cujo teatro é, por isso, essencialmente político. “Afinal, é uma forma de se mostrar como se posicionar no mundo, a relação física da guerra e a opressão homem-mulher.”

É esse aspecto fundamental que aproxima Ítaca da reflexão sobre o eterno estado belicoso que domina os homens em quase todas as partes do planeta. “As guerras estão cada vez mais espalhadas e não são apenas aquelas nominadas, como a da Síria, mas também as silenciosas: as sociais, as que envolvem masculino e feminino e mostram a destituição do poder da mulher, e da fragilidade de fronteiras, que resultam na terrível situação dos refugiados.”

Durante o processo de escrita, Christiane conversou com três refugiados (dois sírios e um paquistanês), cujas travessias até a Europa foram verdadeiras odisseias. A peça é uma produção original do Odéon-Théâtre de l’Europe, do qual Christiane é artista associada, e estreou oficialmente em março, em Paris. É a França, aliás, que tem abrigado os mais recentes trabalhos da encenadora carioca – a tradicional Comédie Française a convidou, em 2017, para ser o primeiro artista brasileiro a dirigir uma criação própria. E foi uma montagem provocadora de A Regra do Jogo, inspirado no filme homônimo de Jean Renoir e que surpreendeu a plateia ao apresentar, em seus primeiros 26 minutos, não cenas teatrais, mas cinematográficas.

Na internacionalização de seu trabalho, Christiane já encenou Na Solidão dos Campos de Algodão, de Bernard-Marie Koltès, na Alemanha, e, desde maio, atua como o talento convidado da bienal Artista na Cidade, de Lisboa, onde seu repertório é apresentado em diferentes espaços culturais da capital portuguesa. Seu próximo trabalho, porém, deverá estrear no Brasil, em 2019, e será outra peça inspirada na Odisseia, Nova Ítaca, sequência do espetáculo que chega agora a São Paulo. “Trata-se de um díptico e, na sequência, vamos tratar daqueles que não chegaram ainda”, conta a encenadora que, para isso, vai conversar com mais refugiados. A peça terá coprodução do Sesc de São Paulo, o que justifica sua estreia em São Paulo – em seguida, vai para o Festival de Avignon, na França. E confirma como o trabalho de Christiane Jatahy se baseia cada vez mais na fronteira porosa e movimentada entre realidade e ficção.

ÍTACA – NOSSA ODISSEIA I

Sesc Consolação. Rua Dr. Vila Nova, 245; tel. 3234-3000. Estreia 5ª (26). 5ª, 6ª e sáb., 20h30, dom., 18h30. R$ 50. Até 5/8

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.