Nos cinemas

Inflação de clichês em filme sobre o Plano Real

Diante da atualidade política brasileira, dificilmente uma ficção seria mais caricata que a própria realidade. Mesmo assim é o que se pode dizer desse Real – o Plano Por Trás da História, de Rodrigo Bittencourt, baseado no livro 3000 Dias no Bunker: um Plano na Cabeça e um País na Mão, de Guilherme Fiúza. O filme tenta recriar, de forma ficcional, os bastidores da criação do Plano Real, que conseguiu debelar a hiperinflação no Brasil ao ser lançado em 1994. Com o sucesso do Plano, Fernando Henrique Cardoso foi eleito em outubro do mesmo ano para o primeiro dos seus dois mandatos presidenciais. O tema é estimulante; o resultado, pífio.

Nesse ponto, é preciso uma consideração prévia. Real – o Plano Por Trás da História apresenta-se como “ficção baseada em fatos reais”, álibi frequente de cineastas. Se alguém disser que as coisas não correram exatamente como são retratadas, sempre se pode retrucar que é ficção e não documentário. Mesmo assim, é de interesse que uma ficção, relacionada a fatos históricos, mantenha certo compromisso com a verdade.

Pode-se também argumentar que a “verdade” ninguém conhece e que apenas se pode especular e ser verossímil. Certo. Ainda assim seria recomendável certa atenção à veracidade e à complexidade de certas situações. No caso, àquela trama político/econômica que o filme se propõe tratar, decupando fatos a seu bel prazer.

Após a queda de Collor, Itamar Franco, o vice, empossado agora como presidente, precisa de um projeto urgente para debelar a inflação. Sob comando do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, um grupo de cabeças coroadas da Economia – Pedro Malan, Pérsio Arida, Edmar Bacha, André Lara Resende, Gustavo Franco, entre outros – é reunido para bolar o tal plano.

Um deles é posto em destaque: o economista Gustavo Franco (Emilio Orciollo Netto), a transitar entre a vida pessoal e sua atuação pública. É descrito como egocêntrico, fiel ao ideário liberal-conservador, sem amigos, pouco identificado com o País. Que o internassem se o vissem diante de uma TV vendo uma partida de futebol, ele diz. A não ser que uma vitória da seleção proporcionasse o clima ideal para o lançamento do plano, como aconteceu em 1994. Com doutorado em Harvard, Franco encaixa-se no perfil do golden boy arrogante e autossuficiente. Satisfaz-se com equações e convicções. Não sei o que o verdadeiro Gustavo Franco pensou ao se ver interpretado desse jeito. Mas é para incomodar. Bem, talvez.

As outras figuras também não rendem, mesmo quando vividas por bons atores e atrizes. Cássia Kis é uma jornalista que entrevista o economista de forma renhida e fornece pretexto para que ele rememore a formulação e administração do Plano Real. É intensa, mas artificial. FHC (Norival Rizzo) e, sobretudo, Itamar Franco (Bemvindo Siqueira), parecem caricaturas ambulantes. Paolla Oliveira, como namorada de Franco, é desperdiçada em atuação chapada. Mariana Lima leva com discrição um papel menor, mas importante, o de secretária do gênio da raça. Pérsio Arida (Guilherme Weber) e Pedro Malan (Tato Gabus Mendes) são figuras interessantes, mas não podem ir além do roteiro unidimensional.

Previsivelmente, o representante do PT, o fictício Gonçalves (Juliano Cazarré) é um clichê irrisório. Afinal, Gonçalves converte-se em representação do Mal absoluto aos olhos de Franco. E de outros.

Cartaz do filme. Foto: Reprodução
Cartaz do filme. Foto: Reprodução

Nada flui

Não se pode dizer que o processo de construção do Plano Real se torne mais compreensível para quem vê o filme. Ok, não precisava ser didático. Mas por que tentar uma explicação, ensaiar um passo a passo, e depois recuar diante da dificuldade do tema? Como passar feito gato em cima de água fria por temas polêmicos como a oposição entre taxa de câmbio controlada ou flutuante? E, omissão maior, como ignorar o contexto em que tudo se dá, expurgando da narrativa aqueles que sofrem com o que se decide nos bastidores, ou seja, o povo brasileiro? Claro, para uma cabeça de Harvard pessoas reais devem ser irrelevantes e mesmo incômodas na confecção de curvas e equações. Mas o ponto de vista do diretor poderia ser diferente e mais matizado. Caso fosse. Aqui, assume essa visão única e adota o ponto de vista do gabinete. E do personagem.

Como cinema, a produção é primária. Os diálogos são ginasianos e não se vê na tela um único plano cinematográfico digno de nota. A fotografia é chapada e sem identidade. Os atores, como se disse, estão deslocados ou mal aproveitados. A narrativa não anda. Pena, porque poderia ter tom trepidante. Afinal, a gestação de um plano econômico de tal envergadura ocorre em meio a sobressaltos, opiniões divergentes, interesses contrariados, intensa luta política, etc. É fruto não apenas de conjeturas intelectuais, mas de suor, sangue e lágrimas. O filme dá uma rápida e superficial zapeada em tudo isso, mas não empolga nem assume o tônus da carnificina política na qual interesses contraditórios encontram por fim uma saída e uma solução – deixando escombros pelo caminho. Falta tensão. Falta paixão. Falta maturidade.

Não é caso isolado. O cinema brasileiro tem dificuldade crônica em retratar o mundo político em sua crônica de bastidores e luta pelo poder. Com exceção de obras-primas óbvias, como Terra em Transe (1967), esse retrato se faz de maneira incompleta. No caso, essa dificuldade adensa-se. Real, o Plano Por Trás da História não roça sequer no que seu título promete. Há pouca ou nenhuma História em seu conteúdo. Quem a faz, e a sofre, não aparece, nem na contraluz. As contradições internas do processo são deslocadas do campo social para o individual. Mas claro, o surgimento de um filme como este, a esta altura do campeonato, nada tem de casual e nem procura esconder o parti-pris. As cenas e os letreiros finais lhe dão a justa dimensão de peça de propaganda.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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