Nasceu em Barcelona em 1948. Viveu entre Marselha, Recife, Sevilha, Brasília, Genebra, Berna e Rio. Nas escolas por que passou como interna, foi rebelde e insolente. Era especialmente desafiadora quando se tratava de assuntos religiosos – “Deus é mau”, pensava consigo. O Que Vem ao Caso (Alfaguara), as memórias de 70 anos de Inez Cabral, passam muito mais por sua busca incessante por liberdade do que pela relação que tinha com seu pai: o diplomata (veio daí a vida nômade da menina) e poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999).

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O escritor é descrito como alguém que a considerava “indomável”, uma menina que nunca aceitou “razões que não sejam as dela”. Foi quem a incentivou a colocar em palavras as imagens que cultivava na cabeça. Isso justo quando Inez penava com o academicismo da escola de belas artes que frequentava, em Barcelona, aos 19 anos. “Vai escrever, minha filha, não vai ter professores para te coibir”. Ela titubeou. Não queria se sentir pressionada por dividir o sobrenome com um dos maiores poetas da língua portuguesa. Ele então sugeriu a prosa.

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O medo da comparação persistiu até pouco tempo atrás. “Quando descobri que ele era um cara famoso, as pessoas me olhavam como se eu fosse uma entidade. Acham até hoje que sou uma extensão dele; às vezes me perguntam coisas inacreditáveis”, lembra a autora, em entrevista por e-mail. “Ainda bem que meu estilo não tem nada a ver com o dele. Alguém me disse que do meu pai herdei apenas a concisão. Herdei ou aprendi com ele? Não sei. Quem estiver interessado nele tem uma enorme bibliografia para pesquisar. Espero que não tentem ler João Cabral em O Que Vem ao Caso: vão ficar desiludidos”.

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A tal concisão está bem impressa no livro, com 99 breves capítulos, dispostos em ordem cronológica. A ideia da publicação veio depois que Inez começou a expressar seus pensamentos em redes sociais, de forma descompromissada. “Passei um tempo flertando com a depressão e resolvi rever a minha vida e meu caminho até hoje. Uma espécie de terapia. Sou uma pessoa otimista, acabei rindo de mim e de meus problemas. O que tornou o livro mais leve e mais parecido com o que foi a minha vida até hoje”, acredita.

Inez chegou ao Rio em definitivo desde 1969, e acabou não se dedicando nem às artes visuais nem à literatura, mas ao cinema e à TV, escrevendo roteiros e filmando. Na poesia não se aventurou. “Não me sinto suficientemente competente. Para ser poeta exigiria de mim ser pelo menos melhor do que ele”, explica.

O autor de Morte e Vida Severina aparece na narrativa de O Que Vem ao Caso como uma figura austera e ranzinza, que não se ocupava da rotina doméstica. Há passagens divertidas, como uma em que Inez, de volta da escola para o Natal, traz uma revista de Asterix e Obelix para ler com o irmão. O pai tacha logo de “subliteratura, perda de tempo”. Só que alguns dias depois, foi flagrado pela filha saindo do banheiro com os quadrinhos nas mãos. A justificativa dele: “A pesquisa histórica é muito bem feita”.

Noutra ocasião, Inez pediu ao pai que lhe conseguisse um autógrafo de Jean-Paul Sartre. O filósofo francês estaria num convenção de escritores na Bélgica, com João Cabral. Ele se recusou: “Claro que não! Só pediria um autógrafo se ele soubesse quem eu sou”. Tempos depois, foi à escola de Inez o pintor Joan Miró, que era amigo de seu pai. Quando a filha foi lhe contar, ele perguntou: “Você falou com ele? Disse que era minha filha?”. A menina respondeu: “Claro que não! Só se ele soubesse quem eu sou”.

Inez se envolveu com a obra cabralina no passado – há dois anos, organizou a antologia A Literatura Como Turismo (Alfaguara), com poemas marcados pelas experiências como diplomata, em países como Espanha, Inglaterra, Senegal e Equador. A editora tem interesse em lançar sua obra em prosa, conta ela (ainda sem data definida), mas Inez agora pensa mais em focar em sua produção.

“Sou uma fã incondicional do trabalho dele. Acho a sua capacidade de dizer exatamente o que quer, com imagens concretas e reais, sem concessões a sentimentos, dores ou penas, apesar de falar nelas sempre que necessário, é uma capacidade que eu adoraria ter herdado. Queria tornar seu trabalho mais acessível às pessoas que não frequentam aulas de literatura”, avalia. “A meu ver, escritores escrevem para seus leitores. A crítica deveria vir depois de lido o trabalho. Acho que hoje em dia a maioria de seus leitores lê e estuda as críticas antes de ler a obra.”

O QUE VEM AO CASO

Autor: Inez Cabral

Editora: Alfaguara

(168 págs., R$ 39,90)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.