Kaiowás da aldeia de Taquara, município de Juti. Foto do kaiowá Ládio Veron, liderança da comunidade. |
O tema dos territórios indígenas já se fez presente outras vezes neste espaço. Hoje, o principal objetivo é trazer ao conhecimento de um público mais amplo as estratégias inventadas pelos índios kaiowás do Mato Grosso do Sul diante da perda de seus espaços territoriais. O Antropólogo Levi Marques Pereira, professor na UFMS – Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, realizou entre eles diversas pesquisas de abordagem histórico-antropológica desde 1997. Ele aceitou me conceder entrevista sobre tema tão relevante.
Antes da ocupação agropastoril, que ocorreu de forma mais intensa a partir da metade do século XX, as comunidades kaiowás do Mato Grosso do Sul ocupavam mais de 100 quilômetros de terra de cada lado da fronteira do Brasil com o Paraguai. No lado brasileiro, chamado Serra de Maracaju, localizavam-se suas aldeias, por eles denominadas tekoas. Cada parentela dispunha de uma porção de terra de uso exclusivo para desenvolver suas atividades produtivas e seus rituais.
Depois da guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e Uruguai) (1865-1870), explicou-me o pesquisador que as aldeias foram atingidas pelas frentes de expansão pastoril. Aos poucos, eles perderam sua autonomia sobre o território de ocupação tradicional. A partir da década de 1940, suas comunidades foram desalojadas de seus espaços por proprietários que compraram, do estado do Mato Grosso, terras que eram consideradas devolutas.
Pereira me relatou que ?prevaleceram os interesses dos grandes proprietários, pois somente nove pequenas reservas foram demarcadas entre 1915 e 1928.
Esses espaços, que deveriam ser destinados às famílias kaiowás que já viviam nesses locais, acabaram se tornando locais de acomodação de grande número de comunidades kaiowás que estavam dispersas?.
Diante disso, os kaiowás resistiram de diversas formas para manter a posse das terras que ocupavam, mas, diante da pressão dos fazendeiros pelas frentes de ocupação, recolheram-se nessas áreas de acomodação, o que gerou grande densidade demográfica. Ao mesmo tempo em que o processo de desarticulação das formas tradicionais de ocupação do território foi e vai ocorrendo, pois isso continua até hoje, eles adotam novas estratégias de organização social. Dentre elas: a reserva como área de acomodação, as populações que vivem em periferias das cidades, os acampamentos mobilizados para reocupação da terra e os índios de ?corredor?.
A reserva como área de acomodação
Kaiowás da aldeia de Taquara, município de Juti. Foto de Ládio Veron, durante os trabalhos de identificação. |
A situação de reserva, imposta pelo SPI – Serviço de Proteção ao Índio – a partir de 1928, altera o padrão tradicional de assentamento das parentelas e aldeias. Pereira referiu que antes da ocupação tradicional, a população kaiowá se territorializava de acordo com: a disponibilidade de locais considerados apropriados por comportarem recursos naturais; a localidade livre de ameaças sobrenaturais, como espíritos maus; a proximidade de parentelas aliadas, com as quais era possível fazer festas e rituais religiosos, e a capacidade dos líderes de conduzir eficazmente a vida comunitária, entre outros.
O antropólogo destacou que a situação de reserva limitou a operacionalização das técnicas de produção material, do sistema médico-sanitário e das suas formas de sociabilidade. A presença de instituições, como a Missão Caiuá, desde 1928, do SPI/Funai – Fundação Nacional do Índio, desde a década de 20, gerou novas formas organizacionais e colocou à disposição dos kaiowás mecanismos de um novo modelo político.
O modelo combina práticas, como: tentativa de recolher ali a população de diversas comunidades; a implantação de programas econômicos voltados para o atendimento de demandas do mercado; a criação de escolas, vistas como possibilidade para a aquisição da língua padrão e a implantação da organização política baseada na chefia do posto e da capitania. O chefe de posto é o representante da Funai, funcionário público nominado, em geral membro da comunidade indígena. O capitão é o líder político interno da comunidade, comumente nomeado por um funcionário graduado da Funai.
As populações que vivem nas periferias das cidades
Pereira destacou ter visitado os kaiowás, que vivem atualmente na periferia de pequenos lugarejos, como ocorre no município de Vicentina-MS. Ao serem desarticuladas suas comunidades, alguns permaneceram na proximidade das terras que ocupavam historicamente e oferecem mão-de-obra volante nas propriedades agrícolas que se instalaram na região. Muitas famílias vivem à margem da assistência social e governamental, em barracos de lona ou de madeira reutilizada.
Acampamentos mobilizados para reocupação da terra
Os kaiowás se organizam em espaços sociais nos acampamentos mobilizados para a retomada das terras consideradas de ocupação tradicional. Quase sempre situam-se em margens de rodovias, nas proximidades da terra reivindicada ou em pequenas porções de área. Em 2001, ao realizar pesquisa de campo ali, Pereira me disse ter observado que as famílias viviam na margem da BR-163 e que hoje se encontram alojadas no interior da terra identificada.
Notou também que ?no acampamento se atualizam formas organizacionais e rearticulam a comunidade política. A referência para essa atualização é buscada na memória de processos sociais vividos no passado, daí a importância dos velhos e dos xamãs, depositários dessas memórias?.
Índios de ?corredor?
No início de 2006, Pereira me descreveu ter se deparado com comunidades kaiowás que se autodenominam população de ?corredor?. Elegem as margens da rodovia para serem lugares de seus atuais assentamentos, como ocorre em Prudêncio Thomaz, às margens da BR-163, entre Rio Brilhante e Nova Alvorada. A área do assentamento é delimitada, de um lado, pela pista asfaltada onde circulam os veículos e, de outro, pelas cercas de arame, que delimitam as propriedades particulares. Nessa estreita faixa de terra, desapropriada pelo governo para segurança da rodovia e para realização de eventuais serviços de manutenção e ampliação, vive atualmente um significativo número de famílias kaiowás, em caráter provisório para a venda de artesanato, ou ali acampam enquanto reivindicam terras. Não contam com a assistência da Funai e da Funasa – Fundação Nacional da Saúde.
Para Pereira, ?a situação atual dos kaiowás, que se recusam a viver nas reservas e passaram a desenvolver outras modalidades de assentamentos, revela a face nefasta do desenvolvimento agropecuário em Mato Grosso do Sul, que excluiu o segmento indígena de seu planejamento?.
Zélia Maria Bonamigo é jornalista, mestre em Antropologia Social pela UFPR, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.
zeliabonamigo@terra.com.br