Chega à reta final o Festival de Teatro de Curitiba, que começou no dia 17 e termina no domingo. Já faz parte do folclore do festival sua abertura em noite chuvosa no Ópera de Arame, um teatro de vidro transparente e metal, construído sobre um lago, no qual trovões e relâmpagos invariavelmente competiam com a voz dos atores no infeliz espetáculo escolhido para abrir o evento.
Talvez por isso, nesta 14.ª edição, o Ópera deixou de ser palco de abertura. Porém, foi utilizado na noite de ontem(23), quando abrigou o espetáculo francês "Coda", do Théâtre du Radeau, o único internacional da mostra. A chuva, claro, mais uma vez marcou presença e caiu forte sobre o teatro sendo ouvida, como uma trilha sonora constante, durante toda a apresentação.
Com direção e cenografia de François Tanguy, "Coda" será apresentado no Sesc Belenzinho, a partir de 5 de abril, durante duas semanas, com apresentações de quinta a domingo. Talvez possa ser melhor apreciado ali. Falado em francês, espetáculo não é de fácil comunicação, pelo contrário. Diante do espectador há uma espécie de largo corredor no qual estão cadeiras caídas, mesas pesadas e anteparos que ora lembram grandes quadros, ora paredes cenográficas, ora divisórias – quase sempre se interpondo entre pessoas.
A maior parte dos textos, trechos de autores como Kafka, Artaud e Pirandello, entre outros, é dita pelos atores lá no fundo do cenário, bem distante do público, ou no escuro e sempre em voz muito baixa, obrigando o espectador a fazer um imenso, e quase sempre inútil, esforço de decifração. São poucos os momentos em que os atores podem ser ouvidos com clareza – a chuva deve ter contribuído para tornar esses momentos ainda mais raros. Mesmo para franceses, nem tudo seria ouvido ou entendido. Mas se na França isso amplia sentidos, pode virar ‘ruído’ e interferir na fruição do espetáculo para quem tenta superar a barreira do idioma.
Evidentemente, não ser ouvido e apenas entrever atores é parte da proposta de "Coda". Bach e Verdi a todo volume também servem para abafar as vozes. A iluminação do espetáculo é muito elaborada, assim como as formas que são criadas no palco. Se textos importantes são ditos na penumbra, imagens como de uma mulher em vestido de gala, desfilando sobre uma passarela podem ser vistas com nitidez, em plena luz. Assim como casais que dançam e se beijam. O mundo anda meio assim, não? Iluminando os espaços vazios e frivolidades, deixando na penumbra o que poderia significar algo.
Teatro, aprendemos, é local de encontro, no qual alguns homens dizem algo para outros. Talvez fosse realmente assim na Grécia, onde a cidade inteira se reunia durante os festivais para refletir, por meio do teatro, sobre seu modo de viver. Porém como fazer isso nos dias de hoje, quando a humanidade já acumulou milênios de criação artística? O teatro ainda diz alguma coisa num festival onde os números, a quantidade, parece ser mais importante do que a qualidade? Não é de hoje que artistas começaram a falar sobre a dificuldade de efetiva comunicação, sobre a ineficácia da arte no mundo do bombardeio de informação, fragmentado e sem sentido.
"Coda" fala sobre isso com sua forma. Não é exatamente uma novidade. Nem precisaria ser. Mas, no fim das contas, talvez tenha forma demais para significado de menos. Algo de ‘já visto’ perpassa "Coda". O melhor teatro, em todo o mundo, vem fazendo o caminho oposto: saindo da forma e voltando à simplicidade do homem que fala para outro homem.
Como diz Boal, o teatro é a arte do futuro, porque no futuro só ali um homem encontrará outro homem, sem o filtro de uma tecnologia, de uma tela: seja de computador, TV ou celular. Mas, por outro lado, a reunião de pessoas, sua presença física, pode não significar encontro real. Nesse sentido, Coda pode ter cumprido um papel, ainda que não tenha sido aquele a que se propôs, ao revelar quão reduzida é a disponibilidade do espectador para ir ao encontro de uma proposta mais elaborada em meio a um festival que aposta na quantidade em detrimento da qualidade.