Para resistir ao fio da Islândia, que pode chegar a 30ºC negativos, alguns recorrem aos agasalhos, à bebida ou ao aquecimento. O escritor e cineasta Andri Snaer Magnason, porém, se abriga nas ideias: “As ideias em um livro são como álcool em um drinque. Alguns são cerveja, têm 5%. Eu queria escrever um livro como o uísque: 45% de ideias”, afirma em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. Uma de suas principais obras, Lovestar, está sendo publicada pela primeira vez no Brasil pela editora Morro Branco, e mais parece uma enxurrada de ideias.
Lovestar é um romance, mas seu primeiro terço se assemelha a uma antologia de contos. Cada capítulo explora conceitos tão díspares – e graciosamente disparatados – que poderiam dar origem a histórias individuais. O livro se passa em um futuro no qual fios e aparelhos eletrônicos foram abolidos: as pessoas se conectam umas às outras por meio da tecnologia da corporação Lovestar, que acabou por dominar o planeta em um conglomerado global de indústrias, bancos, lojas e empresas de toda sorte.
Duas narrativas principais se alternam. Em uma delas, o casal Indridi e Sigrid é coagido a se separar porque uma das subsidiárias da Lovestar, que calcula almas gêmeas, descobriu que Sigrid é o par perfeito de um sujeito dinamarquês que ela nunca viu. Na outra linha, com um tom quase místico, o magnata da empresa começa a desvendar, pelo método científico, pistas sobre a natureza do divino no mundo.
Quando Indridi nasceu, seus pais armazenaram cópias de seu DNA. Aos 5 anos, por ser muito travesso, o menino foi “rebobinado”. Ou seja, foi morto e clonado. “Nasceu” novamente e cresceu com a pressão de ser a criança ideal para não ser reiniciado de novo. Anos mais tarde, como um Romeu distópico, quando se negou a deixar Sigrid, Indridi perdeu acesso à conta no banco como retaliação e foi obrigado – por meio de uma invasiva biotecnologia que toma posse de sua fala – a fazer publicidade dos produtos da Lovestar para saldar as dívidas.
A cada capítulo, os absurdos se amontoam, e o mais esquisito é que todas as tecnologias que soavam inalcançáveis quando Magnason escreveu, em 2002, hoje são realidade: estamos sempre conectados; padrões de consumo são vigiados por empresas detentoras de monopólios globais; somos bombardeados com publicidade dirigida especificamente para nossas preferências. A clonagem humana e a engenharia genética ainda não estão presentes como as outras tecnologias previstas por Lovestar, mas já provocam debates éticos na comunidade científica.
Mescla do tom distópico de George Orwell, Ievguêni Zamiátin e Aldous Huxley com o catastrofismo plausível e assustador de Black Mirror, Lovestar prima por mostrar que o futuro não será dominado por um governo maligno e totalitário, mas sim por corporações que vendem felicidade compulsória.
O que mudou no mundo desde que você escreveu Lovestar?
Várias ideias futuristas ou absurdas na época se transformaram em cotidianas. Então muito do livro passou de ficção científica para realidade. A internet estava engatinhando, a maior parte das pessoas não tinha banda larga ou celulares. Eu ainda tinha internet discada. Alguns dos conflitos são muito próximos de casos que nós estamos acompanhando, como o da Cambridge Analytica. No livro, explorava como essas promessas poderiam se tornar uma distopia. Não uma promovida por governos, mas por empresas.
Qual é a próxima revolução tecnológica que o aterroriza?
Coisas como essas vêm em grandes saltos. O salto em que ainda estamos hoje é essa conexão entre internet e marketing. Acredito que o próximo tenha a ver com a inteligência artificial, realidade virtual e biotecnologia. Nós já vimos relances, mas ainda não como uma força presente como foi a internet nos últimos 15 anos.
Lovestar tem um tom religioso que não é muito comum para o gênero. Por que essa opção?
Usei um enquadramento da mitologia nórdica para amarrar o livro, e a maioria das pessoas não percebe isso ao ler. Nem os deuses podem controlar seus destinos. Eu estava interessado nessa ideia de que as coisas são sobrenaturais até que a ciência as desvende. Apliquei essa ideia à religião e pensei o que aconteceria se pudéssemos detectar o sobrenatural cientificamente. Então esse cientista, que não é muito religioso, começa a encontrar pistas científicas daquela existência divina.
Como a vida em um país como a Islândia influenciou sua obra?
A Islândia é um bom pano de fundo tanto para a utopia como para a distopia. Nós temos uma tendência de levar as ideias ao extremo. Lovestar é sobre as coisas se tornarem tão boas, organizadas e precisas que acaba se transformando em uma distopia. É uma sociedade tecnológica ficando tão livre que acaba com o oposto de liberdade.
Hoje a ficção científica é o gênero que melhor traduz nosso mundo tecnológico?
Temos essa sociedade do presente, e é natural que estejamos vivendo nessa época. Mas há um futuro. Se você tiver filhos, deve imaginar como será o mundo deles. Há pessoas vivas hoje que estarão vivendo perto do ano 2100. Então é natural também pensar no futuro. Quando se tem as tensões dramáticas entre tecnologia e natureza que nós temos, acho que essa se tornou uma das mais urgentes formas de arte, porque ela explora para onde essas tendências estão nos levando. É quase uma obrigação do autor abordar isso. Se a ficção científica não levantar essas hipóteses, nós andaremos cegamente.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.