A morte de Anchizes Pinto, na última segunda-feira, dia 30 de março, encerra em definitivo não um ciclo do cinema nacional, concluído há muito, mas um círculo de pessoas vinculadas a uma era em que este cinema conciliava salas cheias e risos fartos. Anchizes é o nome do comediante Ankito, surgido nas telas no começo dos anos 50s e que morreu de câncer aos 85 anos.
A reação de algumas pessoas ao saberem da morte – “Nem sabia que estava vivo” – foi honesta e recorrente da cultura brasileira. Nomes que contribuíram para esta cultura são sumariamente esquecidos depois de certo tempo se não fizerem estardalhaço ou escândalo. Ainda mais no caso de Ankito, ícone dos anos 50s, que teve vida longa.
Contribui para o esquecimento, a falta de interesse na cultura brasileira que atinge boa parte da sociedade, a relação fugaz de hoje em dia com o produto cultural e o fato de as gerações jovens estarem ligadas em outros fenômenos, típicos de sua época. Tudo conspira contra e nada a favor.
Mas é bom que se registre: Ankito foi grande e dono de obra com atuações em 56 filmes. Depois de atingir o patamar de ícone popular, continuou trabalhando no cinema, teatro e televisão, mas, claro, sem reproduzir o sucesso de seus anos iniciais, principalmente no cinema, principalmente ao lado de Grande Otelo, amigo, comediante e ator.
Na realidade, Ankito, com Otelo, Oscarito e Zé Trindade formaram o quarteto de ouro de uma primeira leva de comediantes que arrancaram risos das massas. Havia, claro, outros comediantes bons surgindo ou produzindo, como Mazzaropi, que desenvolveu estilo e trajetória própria, independente e original. Mas o raio de ação do quarteto acima era maior e atingia público mais diversificado. Em comum, boa parte destes comediantes tinha a origem no circo e espetáculos em cassinos ou casas similares.
No caso de Ankito, paulista do Brás, filho do palhaço Faísca e sobrinho de Piolim, a ascendência circense nunca foi negada. Aos cinco anos estava no Globo da Morte e aos onze era acrobata no Cassino da Urca. Mais tarde diria: “Meu maior orgulho foi ter nascido em circo e aprendido tudo o que sei por lá com meus avôs e meus pais”.
E, assim, fez história. Depois de estrear no teatro em 1949, Ankito chegou ao cinema em 1952, com É fogo na roupa em que suas palhaçadas eram entremeadas por participações musicais de Emilinha Borba, Jorge Goulart, Elizeth Cardoso e outros. Era o auge da chanchada – formato simples e fulminante do cinema brasileiro.
Capa da biografia do artista, lançada em fevereiro deste ano. |
A chanchada arrastava milhares de pessoas às salas de cinema, para desespero dos intelectuais e críticos, entretinha, arrancava risos e seguia adiante porque vinha mais chanchada. Foi grande negócio – produziu cerca de 300 filmes – que predominou dos anos 30 ao final dos 50, invariavelmente botando carnaval e mulheres com as pernas de fora (muito discretas para os padrões atuais) ou simplesmente apelando a paródias de grandes sucessos do cinema americano. O formato deu certo, mas se esgotou.
No caso de Ankito, os filmes eram burlescos, ingênuos, de forte apelo popular. E tinham títulos coloquiais e sem pretensão. Coisas como Vai que é mole, Pé na tábua, Sai dessa recruta, Metido a bacana e Pistoleiro bossa nova, entre outros. Enquanto pontificava no cinema, Ankito dava as caras no teatro, mas tudo em seu gênero, em peças como Lá vem a cobra grande, É fogo na bica, Elas querem é poder, Deu viado na cabeça e Quem ó… na minha mulher. Também aí o compromisso era com o riso fácil. Como no circo.
A chanchada saiu do mapa no começo dos anos 60s. A partir dos anos 70s outro gênero surge em seu lugar, desta vez abolindo o riso e recorrendo ao erotismo e mulheres nuas: é a ,”pornochanchada”, gênero que entrou em falência com a abertura democrática e importação de filmes suecos e dinamarqueses, que entravam direto no assunto.
A pornochanchada não reservou muito espaço para os comediantes; não é mole concorrer com mulheres nuas. Além disso, a carreira de Ankito foi abreviada por um acidente durante as filmagens em 1960 – ele despencou de um prédio em construção, limitando os seus movimentos.
A partir dos anos 60s e principalmente dos 70s, Ankito passou a ter presença discreta, embora continuasse atuando no cinema, teatro e televisão, onde trabalhou em programas humorísticos e novelas. A partir de 1990, diminuiu o ritmo de trabalho. A penúltima peça foi em 1992; a derradeira em 2000. A última participação no cinema foi em 2004.
Nos últimos anos Ankito morava com a mulher, atriz Denise Casais, num sítio em Belford Roxo, Baixada Fluminense. Denise prestou-lhe bela homenagem, em vida, com apoio da Funarte. A biografia Ankito, minha vida …meus humores levou quinze anos para ser escrita.
O livro de 200 páginas, muitas fotos, reproduções de cartazes de filmes e o essencial da carreira do comediante, serviu, na noite de lançamento, em fevereiro, para o derradeiro encontro de Ankito com os fãs e colegas do meio artístico. Ele se foi e o Brasil perde uma testemunha ocular e participativa de uma fase avacalhada, porém muito divertida, de sua cinematografia.