Humor e muita confusão em “Irma Vap – O Retorno “

Carla Camurati virou um fenômeno do cinema brasileiro ao inventar a chamada ?retomada?. Após a desastrosa política cultural do governo Collor, que baniu o cinema nacional das telas do País, Carla fez um verdadeiro trabalho de formiguinha. Com a cópia do filme que havia feito, "Carlota Joaquina, Princesa do Brasil", ela percorreu o Brasil, ganhando aliados para a causa da exibição. "Carlota Joaquina" atingiu o que, na época, parecia impossível, um público pagante de 1,5 milhão de pessoas, e mostrou que o cinema era viável no Brasil. Desde então, os filmes brasileiros percorrem um longo caminho que batalha em duas frentes – reconhecimento estético e comercial, às vezes, mas nem sempre, coincidentes. Carla, que gosta de assumir riscos, agora assumiu um bem grande – estréia amanhã "Irma Vap – O Retorno", que ela dirigiu para as interpretações de Marco Nanini e Ney Latorraca.

Não é uma simples adaptação da peça que permaneceu longos 11 anos em cartaz (um recorde). Carla e suas roteiristas, Melanie Dimantas e Adriana Falcão, fizeram outra coisa, uma reinvenção da peça, uma transcodificação que pode até ser menos divertida que o original, mas possui momentos hilários e, desde logo, ostenta uma credencial e tanto – Nanini e Ney, como se esperava, são ótimos, mas o primeiro vai além e cria momentos de antologia. "É uma bobagem", a própria Carla define seu filme. E ela cita as abobrinhas do roteiro. Logo no começo, no enterro do produtor, Ney Latorraca, no papel de mãe, irrompe em cena em lágrimas e, enquanto Marieta Severo, Diogo Vilela, Paulo Betti e Louise Cardoso recitam falas célebres de peças de Tennessee Williams, Shakespeare e Calderón de La Barca, ele/ela diz a frase que é uma demência – "Eu li, leio, lerei, sou uma mulher lida." Carla imita Ney e morre de rir. "Eu escrevi, dirigi, encenei cada piada com eles e rio como se estivesse vendo pela primeira vez. Sou muito boba." Não é, não. A ?bobagem? de Carla encerra um tributo ao teatro e à arte da representação. E ela arrisca tudo.

"Irma Vap está sendo lançado com 108 cópias, o que inviabiliza que eu saia com as cópias debaixo do braço pelo Brasil afora", ela explica. Esse lançamento corresponde a uma outra etapa do cinema brasileiro, pós-retomada, e ocorre num momento de números alarmantes. Já houve, em 2006, um supersucesso como "Se Eu Fosse Você", de Daniel Filho, produção da Total, que ultrapassou 3,5 milhões de espectadores, mas a média da freqüência aos filmes brasileiros anda fraca. "O Gatão de Meia Idade", de Antônio Carlos Fontoura, teve 63 mil espectadores; "Depois Daquele Baile", de Roberto Bomtempo, teve pouco mais de 15 mil pagantes e o melhor de todos esses filmes fez 45 mil espectadores, um fracasso para as suas 70 cópias, desmontando a mística de que o logo da Globo Filmes, a empresa co-produtora, já alavanca a bilheteria – "A Máquina", de João Falcão. Se você acha o fim da linha, prepare-se. As coisas sempre conseguem piorar. "O Veneno na Madrugada", de Ruy Guerra, e "Bens Confiscados", de Carlos Reichenbach, ficaram nos míseros 2 mil espectadores. Carla Camurati não quer nem pensar nesses números. "Senão a gente pára e se arrisca a achar que não vale a pena", explica.

Seu desafio era encontrar, no cinema, o equivalente para as rapidíssimas trocas de roupas que permitiam a Ney e Nanini passarem de um personagem a outro em segundos. Simplesmente usar o corte, um recurso do cinema, ou, no inverso, a câmera parada, como no teatro, não ajudariam em nada. Era necessário ousar e, assim, surgiu a estrutura narrativa sobre atores que tentam remontar "Irma Vap" e esbarram em numerosas dificuldades, não sendo a menor delas o fato de o autor da peça viver recluso (e não querer negociar os direitos). Pelo menos é o que parece – mas as coisas, você sabe, nem sempre são o que parecem. Superpõem-se várias tramas. O ator e diretor Darci Lopes e sua mãe Odete; o autor recluso Toni Albuquerque e sua enlouquecida irmã Cleide; e a peça, propriamente dita, com sua trama policial e o mistério que cercava Irma Vap, anagrama de vampira, no castelo de Lorde Edgar.

"Sabia, desde o início, quando a idéia da peça dentro do filme começou a se impor, que poderia trabalhar o complexo de Édipo na relação do ator e diretor com a mãe, e o Ney (Latorraca) estaria ótimo nos dois papéis. Foi só depois que pensei em "O Que Terá Acontecido a Baby Jane?" (o cult de Robert Aldrich) para a ligação entre o autor recluso e a irmã, Cleide", conta a diretora. Se fossem só esses personagens, já seria um tour de force dos atores, mas existem outros – todos aqueles que compunham o elenco da peça (e que já eram interpretados por Ney e Nanini), Lady Enid, Nicodemo, Lorde Edgar, Jane, Irma Vap e o lobisomem. Nanini acrescenta que foi muito divertido fazer a irmã que joga seu charme sobre o ator principiante que vai fazer a peça. "Cleide não é nenhuma garota. Precisava trabalhar o corpo de uma mulher de meia-idade. Vi vários filmes da Bette Davis e de outras estrelas da era de ouro de Hollywood para compor a personagem ideal", diz Nanini. O computador ajudou. "Ficava recortando partes de todas e remontando numa figura única", explica.

Ney Latorraca sempre achou que Nanini e ele tomaram a decisão certa, parando com a peça no auge. O filme é um resgate e uma forma de matar a saudade, já havia dito à reportagem, no set de filmagem. Ambos, Nanini e ele, adoram os desafios. Usar máscaras e disfarces é próprio da arte do ator, mas nunca, como aqui, Nanini e Ney haviam experimentado a vertigem de representar com seus duplos, o tempo todo. A computação gráfica ajuda no processo, mas Carla e seus atores correram riscos maiores ainda. "Tem uma cena em que o Toni vai pegar um copo e a Cleide se adianta e pega o copo antes dele", Nanini lembra. Em outra, Darci e a mãe brigam pelo telefone. Parece simples, mas deu o maior trabalho. Tudo, nesses momentos, tinha de ser colado para não haver o risco de um deslocamento dos objetos em cena. Se ocorresse, por milimétrico que fosse, não poderia haver superposição de imagens e seria um desastre. É um processo meticuloso e caro. Não havia precedente no cinema brasileiro. Carla e sua equipe (o diretor de fotografia Lauro Escorel) tiveram que aprender, adaptar, aperfeiçoar. "Todo o filme foi construído dentro do conceito do timing, para funcionar como um reloginho", ela diz. Como criar dentro de tanto controle, como não se sentir preso num ambiente todo colado? "Os atores foram fundamentais", resume Carla. Não só Nanini e Ney, mas também Leandro Hassun, Thiago Fragoso e os demais integrantes do elenco "São muito talentosos", destaca a diretora, que reconhece – "’Irma Vap – O Retorno" é, sim, um tributo à arte da representação".

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