Cena de “Apolônio”: Marco Nanini em estado de graça. |
Gramado – Chega ao fim o 31.º Festival de Cinema Brasileiro e Latino. Hoje à noite acontece no cine Embaixador, palácio do festival, a festa de premiação com a entrega dos Kikitos aos melhores desta edição da mostra gramadense. A menos que o paranaense O Preço da Paz, de Paulo Morelli e Maurício Appel, exibido ontem à noite, tenha sido uma grande surpresa, é muito provável que o júri termine jogando suas fichas no filme de Hugo Carvana, Apolônio Brasil – O Campeão da Alegria.
Aplaudidíssimo na noite de quinta, Apolônio Brasil é a nova versão do vagabundo que Carvana celebrizou em seus melhores filmes. É um artista, e nisso vai uma grande diferença em relação aos personagens anteriores. Sua alegria de viver é mesmo contagiante, mas no fundo corresponde a uma certa estereotipação do brasileiro. Há bons motes (a bêbada que repete a todo momento “Canta Babalu, poxa”), boas cenas (a do militar que também vive repetindo – “Nós não somos general, somos major”), mas roteiro e realização não correspondem ao que se pode esperar de um diretor com o currículo de Carvana.
O que ajuda é Marco Nanini, um ator em estado de graça, como José Dumont em Narradores de Javé, de Eliane Caffé, que também passou aqui em Gramado, mas fora de concurso. Nanini canta muito bem e tem o timing perfeito em cenas como aquela em que banca o neurastênico.
Face aos aplausos que recebeu, é pouco provável que o júri tenha coragem de bancar outra candidatura entre os concorrentes brasileiros. Com todos os defeitos que possa ter, De Passagem, do estreante Ricardo Elias, foi o melhor e mais generoso dos filmes nacionais da competição – sem ficar só nas boas intenções, como andaram dizendo alguns críticos que não embarcaram na viagem proposta pelo cineasta.
Disputa acirrada
A disputa será mais acirrada entre os filmes latinos, com dois fortes concorrentes. O júri deve optar por Segunda-Feira ao Sol, de Fernando Leon de Aranoa, em prejuízo do filme argentino de Adolfo Aristarain, Lugares Comunes. Na quarta, passou o filme português de Leonel Vieira, A Selva, baseado no romance de Ferreira de Castro, que já havia sido filmado na Boca do Lixo. A Selva é teatral e grandiloqüente, tem também excesso de música, mas é um fato que o diretor adotou um tom difícil e conseguiu mantê-lo até o fim para tratar de um tema forte: a utilização do trabalho escravo do homem nos seringais da Amazônia.
Quinta foi exibido o mexicano Conto de Fadas para Ninar Crocodilos, de Ignácio Ortiz, vencedor de vários prêmios Ariel, o Oscar do cinema do México. Como em Fiorile, dos irmãos Taviani, a maldição que atinge uma família é o fio condutor do relato, que atravessa um longo período de tempo. O diretor retoma a vertente do realismo poético latino-americano, mas o leitor só saberá por que seu filme foi definido pela crítica como “matou o coiote e foi ao cinema” quando, ou se, o conto for lançado nos cinemas brasileiros.
Documentário
O melhor documentário foi O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento, que sai de Gramado diretamente para a seleção oficial do festival de Veneza, na próxima semana, mas também merecem registro outros dois documentários de intenções e técnicas diversas: À Margem da Imagem, de Evaldo Mocarzel, discute, não sem controvérsia, a condição dos excluídos sociais e também a utilização da imagem dessas pessoas à margem da sociedade. E Recife/Sevilha – João Cabral de Mello Neto, de Bebeto Abrantes, que oferece um retrato delicado do grande poeta e expõe o aspecto mais interessante de sua criação. Logo no início, Abrantes fala na poesia como tempo, mas o poeta prefere dizer que a dele é, fundamentalmente, de imagem. O melhor curta foi Visionários, de Fernando Severo, mas o júri não será louco de esquecer Carolina, de Jeferson De. O filme consagra uma tendência que foi muito forte nesse festival: Gramado 2003 abriu um debate muito interessante sobre a situação dos afrodescendentes – negros, pardos e afins – no País das desigualdades. Jefferson confidenciou que está saindo aqui de Gramado para um festival de filmes negros nos Estados Unidos. Admitiu sua surpresa. Antes desse outro festival, o de Gramado já foi para ele um festival afro-brasileiro. Não representa pouca coisa.