O episódio é conhecido. Concluído o curso de Direito e findo o estágio prévio exigido por lei para o exercício da advocacia, quando o pai imaginava que Honoré de Balzac iria dedicar-se à carreira notarial, teve o desprazer de ouvir do jovem bacharel esta frase simplesmente bombástica:
– Pai, lamento informar-lhe que vou desistir da atividade advocatícia. Pretendo antes dedicar-me inteiramente à literatura, para a qual me sinto mais vocacionado.
Irritado e perplexo, o genitor ainda ponderou:
– Mas você não sabe, desgraçado, que na carreira das letras é preciso ser rei para não acabar como um mendigo ou um pária?
Resposta de Honoré, com aquela vontade forte que já então brilhava no seu olhar de fogo, sob a juba quase leonina:
– Pois bem, só me resta uma alternativa: serei rei.
É não há a menor dúvida que o foi. Rei das letras. Rei do romance. Quem ousará negá-lo? E o símbolo perfeito da sua realeza literária está consubstanciado, em toda a plenitude, nesse monumento singular que se intitula Comédia Humana.
Mais de noventa romances e novelas: esse o território balzaquiano. Mais de dois mil personagens, a metade dos quais perfeitamente definidos em termos físicos e psicológicos, com dados biográficos, aparência, vestuário, idiossincrasias, sonhos, idéias, temperamentos: essa a população. Território e população que definem, histórica e geograficamente, um “país”, um “reino” chamado Comédie Humaine. Título soberbo, impregnado de ácida ironia e sarcasmo contundente.
Ora, esse território em cujos cenários amplos se movimentam milhares de seres humanos, reproduz, com clareza meridiana, quase simetricamente – no espelho romanesco – a sociedade francesa da primeira metade do século dezenove, e das décadas finais do século dezoito. Uma sociedade complexa que Balzac observa, estuda, fotografa, radiografa. Mais ainda: recria e transfigura. E da qual acaba por fazer a dissecação – se não a autópsia – sobre a mesa asséptica (ou no plano transcendente?) do verbo emblemático, mas também demiúrgico.
Produziu Balzac, pois, dezenas de romances que, a rigor, são um único romance. Uma espécie de roman fleuve perante o qual parecem riachos alguns dos romances-rio que se chamam Jean Christhophe, de Romain Rolland, Os Thibault, de Roger Martin du Gard, Os Buddenbroocks e José e seus irmãos, de Thomas Mann, O Don Silencioso, de Cholokov ou Em busca do tempo perdido, de Proust. Mais do que isso, a Comédia Humana talvez seja, por excelência, O Romance. Sem o perfecionismo estético de Madame Bovary, de Flaubert, ou da Montanha Mágica, de Thomas Mann, ou mesmo dos principais romances de Eça e Machado, Stendhal e Dickens, mas cujas imperfeições, cujos altos e baixos, como acontece em Tolstoi e Dostoiewski, correspondem, afinal, ao fluir irregular, desordenado, tempestuoso, febril, da própria vida autêntica, na orografia imperfeita do mundo.
Afresco monumental, painel ciclópico, mural avassalador, políptico assombroso, pintados com as cores vivas de um Velasquez ou de um Renoir (mas também com o “chiariscuro” de Caravaggio e Rembrandt), concerto sinfônico de largos movimentos lembrando Bach e Beethoven, a Comédia começa a impressionar o leitor eventual pela sua extensão invulgar, para deslumbrá-lo e seduzi-lo depois pela profundidade, pela beleza incomum, pelo ineditismo (em seu tempo, é claro) da sua morfologia estrutural e da sua sintaxe orgânica.
Brunetière tinha razão: Balzac não é simplesmente romancista. É o próprio romance personificado. Balzac é a Comédia Humana. E vice-versa.