Escrevi e repito: as histórias nos fascinam. Esse verbo me atrai imediatamente para o dicionário. Lá encontro que fascinar vem do velho francês do século XIV fasciner, que significa ?submeter pela força do olhar? e que, por sua vez, deriva do latim fascinare, que se relaciona com ?encantar, enfeitiçar? e tem parentesco com fascinum, que significa ?malefício, sortilégio?. Já sortilégio remete a…. Fecho o dicionário porque a escrita deste artigo se faz urgente e o fascínio das palavras me promete a atemporalidade.
Mas eu dizia que as histórias fascinam, atraem (olhos e ouvidos) e enfeitiçam (para o bem e para o mal). As narrativas, por sua vez, chegam até nós porque o homem criou a linguagem. Aliás, linguagem, narrativa e poesia são a fonte de toda criação, pois ?o Verbo se fez carne e habitou entre nós?. Analogia, ação e palavra: na síntese a verdade.
Não há povo, com ou sem escrita, que não tenha sua mitologia. Não há mitologia sem narrativa. Não existe narrativa se não houver linguagem. E a linguagem se perpetua no povo de que nasceu e a quem dá identidade. Fecha-se o círculo e a roda do destino e da vida. Em quantas mitologias o símbolo da vida é representado pelo círculo?
Ouço, leio e conto histórias porque é minha maneira de herdar, passiva e ativamente. O verbo herdar conjuga dois sentidos: o de tempo (?ontem?) e o de posse (?dono?). Herdar, diz meu velho dicionário de latim, é ser o dono do tempo. Recebo de donatários/escritores e encaminho para o futuro o que aprendi com as histórias. E, à medida que o tempo passa, começam a confundir-se o lido, o vivido e o imaginado. E o tempo se torna meu dono.
Deixem as histórias permear o indivíduo e cobrem dele o registro e o compasso da letra. E as histórias renascem com novos filtros, amalgamadas de pessoas e tempo.
As estantes, que armazenam e guardam livros sobre leitura e educação, têm recebido uma boa quantidade de textos contando histórias de leitores/professores, nem sempre nesta seqüência. São narrativas que unem o fio da vida ao tecido das leituras. Exemplos de fascínio e aprendizagens apreendidos ao longo do tempo de vida e de leituras. Histórias comoventes de decepções e vitórias, de persistência e devotamento, de solidariedade e sacrifício.
Chegou a minhas mãos, entregue com a delicadeza e timidez de Delani Alves, uma antologia confessional e comovente. São histórias de vida contadas por alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), da Secretaria Municipal de Araucária-Smed. Textos escritos e ilustrados pelos alunos, com a simplicidade de seu contar e a dificuldade de seu escrever, num volume intitulado Histórias que a EJA conta.
São, conforme as apresenta Delani Alves, histórias que ?trazem a marca inicial da exclusão, pela impossibilidade de ler o código lingüístico e do esforço, do empenho para desvendar este universo. Ao se apropriarem deste conhecimento, estes alunos conquistam a possibilidade de exercer seus direitos de cidadãos com a autonomia que a leitura pode trazer?. É um conjunto de 34 histórias, a maior parte delas intitulada ?História de minha vida? ou ?Minha história?. O possessivo tem no caso em pauta um imenso valor de conquista.
A leitura dos textos arrasta o leitor para a beira do precipício do analfabetismo, profundo, voraz, destruidor. Leitores mais experientes, somos convidados a nos debruçar no limite entre a terra dos alfabetizados e o vazio anulador do analfabetismo. E podemos experimentar, pelas narrativas, o esforço extraordinário desses adultos em busca do registro de sua história feita de anônimas lutas diárias.
Histórias de um Brasil rural, inimigo da escola; histórias de um Brasil urbano, amigo da bebida e avesso à amorosidade. Sofrimentos, abandono, morte do desejo, pouca saúde, muito suor, dinheiro mínimo: cada depoimento constrói um percurso que vem de muito longe e de muitos anos buscando o caminho da escola e da escrita. Nesse vagar por terras distantes e, muitas vezes, indesejáveis foram confluindo para Araucária Ambrósio, Antoninha, Antônia Maria, Antônia Noemi, Claudete, Daniel, Diane, Dirce, Dorinei, Everaldo, Gilson, Janete, Joaquim, Marli, José Maria, José Pedro, José Rafael, Juvenal, Maria, Maria de Fátima, Maria Joana, Maria Lopes, Maria Tereza, Marlene, Melícia, Nicomedes, Odete, Salvador, Sandro, Santílio, Sueli, Vera Lúcia, Zenira, Zilma.
Após a exposição de trajetórias de vida, com histórias que levam os leitores de volta ao passado de infâncias que também foram suas, vão sendo distribuídos pelas narrativas personagens, ações, sentimentos e desejos que parecem conduzir histórias, como a de Marli, ?construída de pequenos pedaços e grandes vitórias.? Essas narrativas têm todas o final feliz do desejo realizado: estudar, saber, ser. E a certeza de que sua herança, sua vida contada e registrada nas palavras, será o bem maior que deixarão a filhos, netos e leitores. Na escrita de Zenira: ?Esta é minha história, que me emociona, pois marcou minha vida. Por isso, conto a todos vocês algo tão íntimo, para que minha luta sirva de exemplo àqueles que estão desanimados, desacreditados e têm medo de ir em frente e buscar a sua felicidade?.
Narrativas que, como nos contos tradicionais, terminam com o final feliz da concretização de uma impossibilidade: depois de perdida a infância escolar, encontrar na madurez a oportunidade de emendar as duas pontas da vida, por intermédio da escola, do ler e do escrever.
Renascer, voltar à luz. Claudete ensina: ?É muito triste ser analfabeto, é como se a gente fosse cego?.
A leitura dessas histórias de renascimento só confirmam: mais cego é o que não quer ver.
O sagrado como foco do fenômeno religioso
Gil Filho
O sagrado e o profano seriam dois universos da existência assumidas pelo homem em sua história. São maneiras de ser no mundo e no cosmos. A referência do sagrado posiciona o homem diante de sua própria existência. De modo abrangente, a reflexão sobre o sagrado interessa tanto às ciências humanas quanto à filosofia e à religião.
Uma teoria do sagrado nos permite resguardar um atributo essencial para o fenômeno religioso ao mesmo tempo em que o torna aplicável. Nesta abordagem, o sagrado reserva aspectos ditos racionais, ou seja, passíveis de uma apreensão conceitual através de suas qualidades, e aspectos transracionais, que escapam à primeira apreensão, sendo exclusivamente captados enquanto sentimento religioso. O transracional é o que foge ao pensamento conceitual, por ser de característica explicitamente sintética, e só é assimilado enquanto atributo. Neste patamar reflexivo está o âmago da oposição entre o racionalismo e a religião.
A característica própria do pensamento tradicional diante do fenômeno religioso é de reconhecer aquilo que, por um momento, não obedece às leis da natureza. Esta intervenção no andamento natural das coisas, feita pelo Transcendente, que é o autor destas leis, apresenta-se como uma tese apriorística, ou seja, a própria ortodoxia, muitas vezes, foi responsável por velar o elemento transracional da religião ao enfatizar em demasia o estudo de aspectos doutrinários e rituais e menosprezar os aspectos mais espirituais e essenciais da experiência religiosa.
Entretanto, se o sagrado é único enquanto categoria, paradoxalmente ele é plural como fenômeno. O sagrado em si é exclusivamente explicado em sua própria escala, ou seja, a escala religiosa. Todavia, no plano fenomênico ele se apresenta em uma diversidade de relações que nos possibilitam estudá-lo à escala das ciências humanas.
A partir deste quadro referencial, podemos deduzir que as formas e os conteúdos relativos ao sagrado podem ser considerados como fonte de conhecimento do modo como se apresentam à consciência, restrito aos limites de como se manifestam. A partir desta reflexão, intuímos que o sagrado não está apenas na percepção imediata das formas e do seu conteúdo, mas também nos atos que suscitam a consciência, sendo possível admitirmos que se crie uma determinada expressão do sagrado no âmbito do pensamento.
Tomando o pensamento como espelho do ato a ser expresso, ao nomearmos o sagrado estabelecemos a possibilidade de ele ressurgir, mesmo que o ato não seja de fato consumado por quem o compreende. Assim, chegamos à ambigüidade do rito.
A experiência do sagrado é o ponto de convergência de todas as religiões.
A partir desta discussão podemos conceber quatro instâncias de entendimento do sagrado:
(I) Refere-se à exterioridade do sagrado e sua materialidade a paisagem religiosa com seus elementos como, por exemplo, da estrutura do Templo, da Igreja e os ambientes da natureza destinados ao culto.
(II) Entendemo-lo como sistema simbólico e cultura cotidiana.
(III) A terceira tem a ver com a tradição e a natureza imanente do sagrado. Neste sentido reconhecemo-lo através das Escrituras Sagradas, das Tradições Orais Sagradas e dos Mitos.
(IV) A quarta possibilidade de reconhecimento do sagrado nos remete ao sentimento religioso, seu caráter transcendente e transracional. É uma dimensão de inspiração muito presente na experiência religiosa. É a experiência do sagrado em si. Esta dimensão, que escapa à razão em sua essência, é reconhecida através de seus efeitos. Trata-se daquilo que qualifica uma sintonia entre o sentimento religioso e o fenômeno religioso.
Gil Filho é professor adjunto doutor de Geografia da Universidade Federal do Paraná.
A pequena vendedora de sonhos
Geraldo Almeida (FAO/UFPR)
Já faz algum tempo que Hans Christian Andersen escreveu o conto A pequena vendedora de fósforos. Porém, apesar da distância cronológica que nos afasta do seu conto, é quase impossível esquecê-lo nesta época do ano. Se é bem verdade que já não existem mais pequenas vendedoras de fósforos, afinal, para que eles ainda serviriam?, também é verdadeiro que hoje as pequenas vendedoras que perambulam pelas ruas vendem outras mercadorias. De flores ao próprio corpo, os produtos variam conforme a região, a cultura local e, principalmente, o nível de descompromisso dos cidadãos locais, mais próximos. Não é de se espantar que, passados tantos anos do conto, ainda teremos, em cerca de uma semana, crianças sem absolutamente motivo algum para comemorar o ano novo, tal qual na narração de Andersen.
No referido conto a menina queima um a um seus palitos de fósforos para que sua alma possa, assim como seu corpo, manter-se aquecida. Ao acender o último dos palitos, a menina finalmente realiza o maior dos seus desejos – encontrar a avó, já falecida anos atrás. O limite da narrativa é muito tênue, entre a vida e a morte da personagem. Há, em alguns momentos, quase que uma confluência entre elas. Vida e morte dialogam, entrelaçam e se manifestam, ora em atos racionais como acender os palitos; ora em delírios como desejar plasmar aquilo que é delírio.
Considerado um dos inauguradores da literatura infantil no ocidente, Andersen criou contos de uma riqueza literária desprovida de moralismos, utilizando uma linguagem do cotidiano, acessível à leitura da criança e do adulto. Os relatos dele pertencem a uma linha temática que trata de questões existenciais do ser humano. Quando uma personagem se vê entre o limite da vida e da morte, às vezes animais ou humanos, que foram abandonados ou vivem situações solitárias, buscando um sentido para sua existência, vê-se claramente o perfil e o estilo do autor, também com raízes nessa mesma origem. A exemplo da vida de Andersen, seus personagens são discriminados, tendo uma vivência de confronto entre os limites da existência humana. B. Bettelheim e M. Klein, dois de alguns dos mais conhecidos estudiosos da psicanálise, já analisaram este e tantos outros contos, sob a ótica da psicanálise. Chegaram até a considerá-lo como um não-conto, porque foge à tradicional estrutura do conto, o final feliz. As análises, sob a ótica dessas e de outras tantas linhas de pensamento humano, não são o objeto de minha reflexão. O que gostaria de partilhar é o possível final feliz, de conto de fadas mesmo, que poderíamos dar a essas crianças.
Mesmo sabendo que meu comentário agora se torna utópico, quase infantil pra ser sincero, sonho de verdade, sem escrúpulos, em ler nos mais variados veículos de comunicação, um dia após o ano novo, histórias com o final que faltou a Andersen: Menina de 8 anos, após grande período de abandono, encontra os pais na noite de ano novo; Menina que jogava malabares no semáforo agora vive com a família, estuda e brinca com amigas; Meninas que eram prostituídas, agora são protegidas pela lei e pelos pais, e criminosos estão cumprindo pena… Ilusão???
Depois de anos ensinando valores aos alunos, orientando, debatendo e questionando, vejo que ainda há muito a ser feito. Sei que há muitos outros colegas de profissão que, assim como eu, e alguns ainda mais intensivamente, travam uma verdadeira batalha, ainda que seja intelectual, na tentativa de tecer uma infância melhor àqueles que nada têm. Fazemos tanto, mas não o bastante para dar conta da eliminação do problema. Sabemos ainda que se houver a desistência de alguns, diante das dificuldades de se perceber resultados satisfatórios, o problema tomará proporções ainda mais assustadoras. Dessa forma, restam-nos poucas saídas, entre elas, continuar sonhando com lindos finais de contos de fadas para aqueles que possuem suas infâncias perdidas. Continuaremos a sonhar que um dia a vida possa ter para essas crianças um final tão maravilhoso quanto os finais dos contos. Sei que não é o bastante, afinal, ninguém conseguiria viver ?feliz para sempre?, mas diante de tanto sofrimento enfrentado por seres que nada, ou que pouco possuem para se defender, a vontade é de mudar, mudar rapidamente, mudar magicamente.
E se o que fazemos ainda é pouco para melhorar a vida das meninas e dos meninos vendedores ou não, esparramados pelos milhares de quilômetros de calçadas Brasil afora, alegremo-nos com a retirada de pelo menos aquele que está na esquina mais próxima, ali bem perto. E se na noite de Natal e de ano novo, pelo menos um deles participar da cena como protagonista e não como expectador, tudo já terá sido de grande valor. Contrarie o destino das inúmeras pequenas vendedoras de fósforos.