A civilização que conhecemos facilita a inclusão ou a exclusão de indivíduos e de nações? Somos civilizados ou aculturados? A proposta deste artigo é analisar o conceito de civilização na ótica da divisão do trabalho e do tempo histórico.
Divisão do trabalho – Conforme Friedrich Engels (1820-1895), teórico e participante socialista, “civilização é o estágio de desenvolvimento da sociedade em que a divisão do trabalho, a troca entre indivíduos dela resultante e a produção mercantil – que compreende uma e outra – atingem seu pleno desenvolvimento e ocasionam uma revolução em toda a sociedade anterior”.
Antes dessa revolução da divisão do trabalho, que ocorreu aproximadamente há 2800 anos, a produção dos bens era coletiva. Os indivíduos viviam e trabalhavam em função da comunidade. O advento da “civilização” proporcionou a descoberta de que o homem poderia servir de mercadoria. Com a escravidão, que atingiu seu mais alto grau de desenvolvimento sob a civilização, veio a primeira grande cisão da sociedade em uma classe que explorava e outra que era explorada. A escravidão foi a primeira forma de exploração, a forma típica da Antigüidade. Sucederam-na a servidão, na Idade Média, e o trabalho assalariado nos tempos modernos. Para que essa engrenagem funcionasse, a presença do Estado foi indispensável. A sociedade “civilizada” teve e tem no Estado “essencialmente uma máquina destinada a reprimir a classe oprimida e explorada”. (Engels, 1986)
No tocante à divisão do trabalho no Brasil do período colonial, o contato entre europeus e índios foi devastador. Os historiadores Nelson Piletti e José Jobson de A. Arruda (1997) explicam que os índios foram seduzidos para o trabalho de exploração do pau-brasil, em troca de objetos que os atraíam. Posteriormente, veio a escravização e a tentativa de fazê-los labutar na cana-de-açúcar. Os brancos foram tomando-lhes as terras e submetendo os que não conseguiram escapar. Muitos morreram lutando ou ficaram doentes, devido aos males (varíola, tétano, tracoma, tifo, lepra, febre amarela e outros) trazidos pelos europeus. Acredita-se que mais da metade da população aborígene da América, Austrália e ilhas oceânicas morreu logo no primeiro contato com o branco. Os sobreviventes eram submetidos à descaracterização cultural através da catequese e da convivência com o branco. Perderam sua identidade e substituíram por outros seus valores, crenças e costumes, transformando-se em seres marginalizados e explorados na sociedade dos brancos.
Calcula-se que existiam, em 1500, aproximadamente 8,5 milhões de habitantes no atual território brasileiro. Jorge Caldeira (1999) relata que na Independência (1822), a população não ultrapassava quatro milhões de pessoas e no final do século XX, restaram 500 mil índios que sobreviveram à carnificina.
A jornalista Gabriela Athias em trabalho à Folha de São Paulo (17 novembro de 2002), divulgou que na atualidade os índios continuam levando desvantagens em relação aos não-índios. A taxa de mortalidade infantil entre a população branca é de 29 óbitos para cada mil nascidos. Em contrapartida a mortalidade entre os índios é de 62,5 para cada grupo de mil. Algumas das causas de mortalidade: “a diarréia e falta de saneamento básico, que são um subproduto da miséria das comunidades indígenas”.
Com a população negra também não é diferente. O DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos e a SEADE – Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados informaram que o número de pessoas negras fora dos postos de trabalho é superior ao dos brancos. O estudo foi realizado em seis regiões metropolitanas brasileiras e identificou que os brancos percebem 3,8 salários mínimos em média por mês e os negros percebem 2 salários mínimos. Entre os membros da população parda, a média é de 1,8 mínimo.
Tempo histórico e civilização – Norbert Elias (1994) conceitua civilização como a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. A sociedade ocidental se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas mais primitivas. A sociedade ocidental se orgulha do nível de sua tecnologia, da natureza de suas maneiras, do desenvolvimento de sua cultura científica ou visão do mundo.
Partindo desse discurso não é difícil constatar a ideologia ocidental na concepção de história. A história é dividida em quatro partes: Idade Antiga, da invenção da escrita, aproximadamente 4000 a.C., até a queda do Império Romano do Ocidente, em 476 d.C.; Idade Medieval, de 476 d.C. à tomada de Constantinopla (capital do Império Romano do Oriente) pelos turcos-otamanos, em 1453; Idade Moderna, de 1453 até a Revolução Francesa, em 1789; Idade Contemporânea, que começou em 1789 e se prolonga até nossos dias. Para os estudiosos Claúdio Vicentino e Gianpaolo Dorigo (2002) “medir o tempo histórico e dividi-lo em partes ou períodos é um ato arbitrário. (…) As periodizações são expressões da cultura, ficando evidenciados os principais valores de uma determinada sociedade ou civilização”.
O calendário usado no cotidiano é outro ponto de análise. Vicentino e Dorigo (2002) apontam para a existência de outros calendários diferenciados dos cristãos. O judaico – que conta o tempo a partir do que os judeus consideram a Era da Criação do mundo (há mais de 5 mil anos), definida por estudos de seus superiores religiosos. Já para os muçulmanos, o tempo é contado a partir da Hégira (corresponde à fuga do profeta Maomé de Meca para Medina, o que em nossa periodização ocorre em 622 d.C.). O calendário muçulmano é lunar (ou seja, divide-se em 12 meses, contados, cada um, como um ciclo completo da Lua, e todos juntos são contados a partir de uma órbita da Lua em torno da Terra). O calendário cristão baseia-se na divisão de 12 meses do tempo que a Terra leva para dar uma volta em torno do Sol (movimento de translação), ocorrendo uma diferença de dez dias a mais no calendário muçulmano. “O fato de utilizarmos o calendário cristão resulta de um processo que se originou na conquista da América pelos europeus. Subjugaram-se os povos nativos e suas culturas, trouxeram-se e escravizaram-se diferentes povos africanos, moldando novas sociedades marcadas por esses atos de violência e exploração. (…) Dessa forma, podemos dizer que o tempo (o calendário, a periodização) que utilizamos são também colonizados”. (Vicentino e Dorigo, 2002)
Considerações – O modelo de civilização adotado é discriminatório e dominador. Resgatar os sujeitos sociais é tarefa árdua e complexa, devido aos valores culturais definidos ao longo do tempo. O atraso espiritual e a falta de ética em que vive grande parte da humanidade são imensos. Temos que admitir que somos indivíduos universais e fazemos parte de uma única família. As diferenças entre indivíduos e nações não combinam com a universalidade.
Jorge Antonio de Queiroz e Silva é professor, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná. E-mail:
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