A rigor, A morte de Virgílio é um largo, longo, lento monólogo interior. Documenta, narra, evoca, radiografa, pinta as dezoito horas finais da vida do poeta maior da latinidade.
Na sua musicalidade transparente, essas páginas admiráveis têm algo de um bolero de Ravel que se alonga interminavelmente no tempo, ou de um ?largo? do Xerxes, de Haendel, que se estende nos latifúndios do espaço, ambos hipnóticos e absorventes.
Nessa epiderme textual, a um só tempo cantante e encantante, Broch nos mostra o Pai do Ocidente, o Vater des Abendlandes, como o considerou Haecher, o gênio criador das Bucólicas, das Geórgicas e da Eneida, Publio Vergilio Maro. Lá, na textualidade do romance-poema, o físico e o metafísico, o real e o onírico, o factual e o imaginário, a vida e a morte, o espaço físico e o tempo histórico (mas também psicológico), todos esses termos contraditórios, contrários, antitéticos de equações existenciais, fazem um permanente contraponto lírico.
Sim, a obra hermanbrochiana de certo modo revive, retoma, recria, reinventa e, mais do que isso, transfigura os momentos finais do Cisne de Mântua, daquele que o excelso Dante cantou com estas palavras emblemáticas: ?Tu, Ducca, tu Signore, tu Maestro!?.
Mas atenção: se Virgilio é, sem dúvida, o personagem central do romance ? nem poderia deixar de sê-lo, é óbvio ? há um outro personagem quase tão significativo quanto ele. Um personagem sem nada de físico, de humano, de antropomórfico. Refiro-me à linguagem, à palavra, ao verbo demiúrgico, plástico, pictórico, cantante, musical. É com esse verbo essencial, com seu poder quase encantatório, que Broch acaba por construir o seu romance singularíssimo, não apenas poemático, mas sinfônico, cuja tessitura orquestral nos remete necessariamente para uma análise espectral que o grande crítico russo Mikhail Baktin faz do romance de Dostoiewski.
Mas não se veja A morte de Virgílio como romance biográfico, como não é um romance plano ou poliédrico, linear ou multidirecional. Como não é um romance-tese, um romance-ensaio, um romance alegórico ou metafísico, à maneira de Kafka, ou um romance-rio, como o de Proust. É talvez aquilo que eu, na minha insignificância pensante, ousaria chamar de romance-mosaico, na medida em que nele se fundem e confundem, estilhaçados, diversos tipos de romance, diversas formas romanescas. E há momentos em que, temos que admiti-lo, o Virgílio de Broch nos dá a impressão de ser um heterônimo do próprio romancista, um heterônimo projetado à distância de dois milênios.
Por outro lado, se a tessitura do romance é basicamente monológica, a verdade é que um diálogo acaba por acontecer. Entre que interlocutores? O poeta agonizante e o leitor prenhe de vida, perplexo e deslumbrado com as sementes de beleza que desabrocham no subsolo Jardim de Tanatos, mas que trazem nas suas entranhas os frutos da imortalidade.
Mas não foi esse, afinal, o destino dos maiores poetas da humanidade, de Homero ao próprio Mantuano, de Dante a Camões, de Tasso a Shakespeare, de Goethe a T. S. Eliot, de Saint-John Perse a Fernando Pessoa?
Em suma: narrando, de modo genial, a morte do criador da Eneida, o romancista acaba por ressuscitá-lo. Torna-o vivo, ?sub specie aeternitatis? do verbo. E, fato curioso, esse quase milagre artístico foi realizado por alguém que, segundo Hannah Arendt, em luminoso ensaio, lutou a vida inteira para não ser poeta. Porém, maktub. Estava escrito: Broch acabou por sê-lo, em toda a plenitude.
Com o seu romance-poema (ou poema-romance), com a sua obra-prima, com o seu hino apoteótico e a sua cantata suprema ao primado absoluto e inefável da beleza, tornou-se poeta. É poeta. Desígnios insondáveis da providência, mistérios imperscrutáveis da arte!
Transcrevi, no começo da primeira parte deste artigo, o parágrafo inicial de A morte de Virgílio. Concluirei ? com chave de ouro ? reproduzindo o parágrafo final da obra, este ainda mais longo, ainda mais cantante e ainda mais grávido de beleza indizível: uma espécie do canto coral da Ode à alegria, de Schiller, na Nona Sinfonia de Beethoven, metamorfoseado numa Ode ao Verbo, triunfal, gloriosa:
?O bramido persistia, ressoando da fusão da luz com a escuridão, ambas revoltas pelo som que se encetava; pois só agora aquilo começava a ressoar, e o ressono era mais do que canto, mais do que a vibração de uma lira, mais do que qualquer som, mais do que qualquer voz, por ser tudo isso junto e simultaneamente irrompendo do nada e do todo, irrompendo sob a forma de um entendimento mais elevado do que toda a inteligência, irrompendo como significado superior a toda a compreensão, irrompendo como o Verbo puro que era e que transcendia entendimentos e definições, (…) o Verbo pairava por cima do universo, pairava por cima do nada, pairava mais além do exprimível e do inexprimível, e ele, sobrepujado pelo bramido do Verbo e circundado pelo estrondo, ele adejava junto com o Verbo; mas quanto mais este o envolvia, quanto mais ele penetrava nesse mar de ressono, que, por sua vez, o penetrava, tanto mais inatingível e grande, tanto mais poderoso e esquivo se tornava o Verbo, um mar em adejo, um fogo em adejo, pesado como o mar, leve como o mar e no entanto continuando a ser Verbo: ele não podia retê-lo, não tinha o direito de fazê-lo; inconcebível e inefável era para ele o Verbo, que se mantinha mais além da linguagem?.
Aí não temos a morte, mas a ressurreição de Virgílio. Graças ao gênio verbal de Hermann Broch, exuberantemente visível no seu romance arquetípico, em cujos interstícios se estende, lento e majestoso, uma espécie de ?moto perpetuo? de um canto órfico arrebatador.
Um mítico Orfeu germânico: ele se chama Broch. Hermann Broch.