Releio, depois de quase um quarto de século, um romance fundamental, Der Tod des Vergil, do austríaco Hermann Broch (1886?1951), cuja tradução para o português, magistral, é de Herbert Caro, a quem se devem ainda, entre outras, traduções soberbas de romances de Thomas Mann e Elias Canetti. A edição é de 1982. A única, por enquanto, dentro do condomínio lingüístico luso-brasileiro.
Sou obrigado a confessar, neste momento inaugural do artigo, que esta segunda leitura da obra-prima hermanbrochiana (tanto Os inocentes como Os sonâmbulos e O tentador situam-se num patamar estético inferior, relativamente falando) gerou em mim aquele ?frisson?, aquela sensação de estesia, de deslumbramento (ou alumbramento, para usar o termo empregado pelo crítico Franklin de Oliveira no prefácio da obra) que a primeira leitura não teve o condão de provocar.
Aqui, parafraseando Machado, o Bruxo de Cosme Velho, eu me pergunto: teria mudado o livro ou mudei eu? Fui eu, indubitavelmente, que mudei. Afinal, as vivências e as experiências existenciais, ao longo do mar de Cronos que o barco que somos vai sulcando, são importantes até mesmo para a fruição, não apenas intelectual mas também estética, de um produto literário, seja qual for a sua natureza ? poética ou prosódica.
Diga-se antes de mais nada que se trata de um romance da linhagem dos maiores, não apenas das literaturas de língua alemã, mas das letras universais. Digna, por todos os títulos e com todos os méritos, de figurar numa nominata, certamente incompleta, que inclui Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes, Wilhelm Meister, de Goethe, Ilusões perdidas, de Balzac, Guerra e Paz e Ana Karenina, de Tolstoi, Crime e castigo e Os irmãos Karamazov, de Dostoiewski, Madame Bovary e Salambô, de Flaubert, Germinal, de Zola, A letra escarlate, de Nathaniel Hawthorne, Grandes esperanças e David Copperfield, de Dickens, Middlemarch, de George Eliot, Os Maias, de Eça de Queirós, Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Jean Christophe, de Romain Rolland, Os irmãos Thibault, de Roger Martin du Gard, O processo Maurizius, de Jakob Wassermann, O processo, de Kafka, Auto-de-fé, de Elias Canetti, Em busca do tempo perdido, de Proust, Ulisses, de Joyce, A montanha mágica, Doutor Fausto e José e seus irmãos, de Thomas Mann, O lobo da estepe, de Hermann Hese, O homem sem qualidades, de Musil, As vinhas da ira, de Steinbeck, Absalão, Absalão, de Faulkner, A peste, de Camus, A condição humana, de Malraux, e tutti quanti.
Deixei de lado os autores contemporâneos vivos, duas dúzias de nomes respeitabilíssimos, que vão de Gabriel Garcia Marquez a José(de Sousa) Saramago.
Dir-se-á que, pela altíssima qualidade da prosa requintada de Broch, com suas alquimias e metamorfoses transfiguradoras, com sua capacidade sutil de prestidigitador verbal, o romance em tela seria eminentemente poético. Mas não, sua prosa não é apenas poética. É algo mais. É poesia em prosa. Quer dizer: trata-se de um poema-romance. Ou de um romance-poema. Ou simplesmente um poema, como Dostoiewski rotulou a maioria dos seus romances de gênio. Aliás, enquadram-se nessa categoria quase todas, se não todas as obras citadas num longo parágrafo anterior. Para demonstrar esse fato, qual seja, o de que a A morte de Virgílio é um longo, largo e lento poema heterodoxo, expresso em prosa, em cujas entranhas como que se esconde a força avassaladora da ?poiesis?, basta que se leia o parágrafo primeiro do livro. Aí vai ele, na sua fluidez cantante, harmônica, melódica e rítmica, música que, aliás, perpassa e impregna a epiderme textual da obra inteira:
?Azuladas, leves, movidas por uma branda, quase imperceptível brisa contrária, as ondas do Adriático haviam fluído ao encontro da armada imperial, quando esta, à esquerda, das baixas colinas da costa calabresa, que aos poucos se avizinhavam, dirigia-se ao porto de Brindisi, e neste momento em que a solidão do mar, ensolarada e todavia prenunciadora de morte, convertia-se na plácida alegria de atividades humanas, neste momento em que as águas suavemente abrilhantadas pela proximidade de existências e moradas dos homens povoavam-se de navios de toda espécie, alguns que, tal e qual a frota, buscavam o porto, e outros que dele acabavam de sair, neste momento em que os barcos pescadores de velas pardas já abandonavam em toda a parte os protetores molhezinhos de um sem-número de aldeias e lugarejos, ao longo da beira irrigada de branca espuma, a fim de se encaminharem ao apanho noturno, o mar tornara-se liso, quase como um espelho. Acima dele abria-se, madreperolada, a concha do céu. Anoitecia, e notava-se o cheiro dos fogos de lenha das lareiras, cada vez que os sons da vida, marteladas ou um grito, chegavam dali, trazidas pela aragem?.
Da mesma forma que, com base num minúsculo fragmento de osso, o paleontólogo competente é capaz de determinar o tamanho do mastodonte, mamute ou dinossauro, assim um simples parágrafo, ainda que longo, lido e apreendido em todo o seu fulgor significante, em todo o seu sortilégio mágico, pode propiciar ao exegeta eventual, ao analista em trânsito, a visão axiológica da dimensão, da grandeza estética do romance inteiro, entretecido com quinhentas páginas elaboradas com as mesmas filigranas verbais, para o deleite e o desfrute do leitor cujos olhos lêem, cuja mente capta e cuja sensibilidade frui as mais imperceptíveis pulsações cardíacas do Verbo essencial. Longe do Realismo ou do Romantismo, ou mesmo do realismo mágico.
Para alguns, Broch, ou melhor, a prosa de Broch faz lembrar a de Proust e Joyce. Mas atenção: Broch é Broch. Ele prescinde de paralelos, símiles, modelos, paradigmas, arquétipos. Na sua radical auto-suficiência estética, insisto, Broch é Broch. Respeitemos a sua singularidade intrínseca. Limitemo-nos a admirar a sua especificidade pessoalíssima, com a sua inconfundível estratégia criadora.
(Continua e conclui no próximo domingo.)
