Helena Kolody: “Deus dá a todo mundo uma
estrela./Uns fazem dela um sol/Outros
nem conseguem vê-la”.

De todas as lições que emanam de Helena Kolody nenhuma maior nem mais efetiva para a minha geração, de ordinário suicida e refratária, tanática e amante da Beleza trágica feito fosse uma escultura de osso, do que a imperiosa lição que ela, Helena, nos ensina – lição de ordinário acatada não sem uma ponta de vergonha -, esta de amar a vida feito quem ama uma noiva encantada. Kitsch e encantada, uma noiva…

É isto que faz de Helena, mais que uma poeta da escrita, uma poeta capaz de mitigar, desde os seus olhos azuis, o desconforto da vida que vige em nós alguma vez feito um vício. Arrepiante viver, delata o suicidado no escuro. A corda, um baque, o surdo abismo. Cai, com ele, o pano. Helena voa provando da vida o seu gosto aéreo, e apascenta, feito fossem bichos da noite, as estrelas do céu.

Não, não chore por nós, Helena, por nós que não sabemos. Olhe, com ternura, para a nossa perplexidade pagã e nos dê, nem que seja pela via do poema, o norte da estrela. Você amou mais e por isso mesmo, olímpica, nos ultrapassa em delicadeza e discernimento. Noventa anos! Meu Deus, Helena, não é pouca coisa.

Pedra, poeira, cacos de cristal. Você me disse, um dia, que era possível; você sempre disse e continua dizendo que é possível. Até onde é possível, Helena? Se você já não houvesse respondido, eu de novo lhe perguntaria… Como no poema dos dons, o seu poema dos dons, Helena, e que, pura síntese, o riscar de um fósforo, rediz: “Deus dá a todo mundo uma estrela./Uns fazem dela um sol/Outros nem conseguem vê-la”.

Noventa anos! Noventa anos nos quais vem conduzindo, pastora das estações fugidias de Curitiba, primaveras e verões, outonos e invernos. Quantas primaveras! Quantos verões! Sem esquecer as manhãs azuis de inverno, cobalto e blue, mais azuis que os azuis eslavos de seus olhos de menina. E os castos outonos ali onde uma folha desprende-se do galho, madura desprende-se e, sem aviso, hesita, rodopia e cai. A tudo teima em assistir o seu coração em segredo.

O croniqueiro, dono de objetividades e concretudes, de ordinário às voltas com fatos e eventos, sólidas acontecências, e o bruto ríspido dos dias, vocês estão vendo, dá lugar aqui a esta conversa aragem e nuvem, uma conversa que se pretende cheia de passarinhos, só para celebrar no que em Helena Kolody é vida estuante de vida, a folha da árvore, uma movediça réstia de sol. De Helena, aleluia!, seus noventa aniversários.

Parece que foi ontem – menino ainda rondei sua casa com um livro de sonetos dentro do bolso do sobretudo, sem coragem de subir ao seu apartamento; rapazote de incipiente buço busquei na Biblioteca Pública a sua poesia, alimentando-me dela naquelas manhãs que, de tão antigas, sugerem hoje a pétala amarelada colada à página de um velho caderno. Pétala e manhãs velhas, onde vos reencontrar senão à luz de um poema singelo de Helena?

É isso – a poesia em essência, a essência da vida. Não me venham, ao menos agora, neste instante fugaz, com os cerebralismos de Auden e nem as cadências (des)medidas de João Cabral de Melo Neto. Um “não” aos rodopios visuais dos concretos e às suas linguaviagens. A vida, humilde, pede abrigo ao teto humilde dos versos que tocados da ternura das crianças são só uma luz – trêfega e bailarina, como trêfegos e bailarinos são os loucos, os bêbados e as gaivotas do céu.

Sejamos líricos, sejamos pornograficamente líricos, ao menos hoje, quando a poeta Helena Kolody crava no calendário da vida os seus noventa anos, inaugurais e epifânicos, pura notícia de um Deus baixo o azul de outubro em Curitiba.

Parabéns, Helena. E nós, para lembrar a poeta, seguimos sendo seus filhos… Velhos embora, ao seu lado, Helena, pequeninos feito um grão de milho.

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