Se o Rio Mississippi cortasse o Pará e em suas margens brotasse cupuaçu em vez de algodão, blues seria só festa e BB King, um caboclo chamado Mestre Solano. Aos 72 anos, 60 de carreira, 17 discos lançados, só Deus sabe quantos vendidos, Solano é um totem pouco reverenciado fora de seu reino. Instituiu no final dos anos 70 a guitarrada, uma música tão brasileira e saborosa quanto o açaí, chamada assim a partir dos anos 90, quando sua progenitora, a lambada, entrou em decadência.
Solano com sua Gibson, uma das quatro guitarras que possui (da mesma marca de Lucille, a menina dos olhos de BB King), acaba de lançar o mais cuidadoso álbum de sua discografia. Como só agora teve dinheiro de uma empresa patrocinadora, a Natura, honrou cada centavo. Mestre Solano – O Som da Amazônia tem 13 temas do guitarrista paraense, sete deles inéditos. Conta com outro hábil das seis cordas do Amapá, Manoel Cordeiro (pai do cantor Felipe Cordeiro), na faixa As Belezas do Marajó. E com o grande violonista de Santarém Sebastião Tapajós, que protagonizou a rara cena de deixar suas terras e ir a Belém apenas para gravar o tema que fez ao amigo, Rei Solano.
A guitarra de Solano é imune a egos alterados, limpa de efeitos e transparente de técnica. Nada de distorções, nada de velocidade. Sua guitarrada é assim, uma música essencialmente instrumental e vibrante, pensada para fazer o baile ferver com o som puro de uma Gibson, uma Fender, uma Yamaha japonesa ou uma Condor brasileira. O tema é apresentado primeiro, geralmente sobre uma base rítmica de carimbó, bolero, lambada ou brega – o que no Norte não tem carga pejorativa nem é sinônimo de Reginaldo Rossi. E o improviso vem depois, mas não com o efeito vulcânico do blues. Cada frase pensada sobre as harmonias primitivas têm vida própria, como se fossem novos temas.
Solano chegou até aqui se equilibrando em épocas de seca e dias de glória. Gravou seus primeiros três discos pela Continental, ainda decodificado pelo Sul e Sudeste como um “cantor brega”. Seguiu depois para a Atração e RGE até desaguar no amazônico leito dos independentes. Sua vitória maior foi com Ela É Americana, de 1975, regravada por Dorgival Dantas, Aviões do Forró, Alípio Martins e Arnaldo Antunes. Se fosse BB King, estaria milionário. “Os vendedores diziam que não davam conta de repor meu disco nas lojas. Este com Ela É Americana deve ter vendido demais, acho que mais de 200 mil cópias”, ele calcula. Sua história melhor se deu dentro de uma prisão. Se fosse BB King, já teria seu filme.
Fim de semana na penitenciária de Belém, 1970. Solano fazia um show para os detentos, que em dias de festa andavam livres pelo pátio central. Quando terminou a terceira ou a quarta música, um deles se aproximou. Era Denizar, homem perigoso de Abaetetuba, mesma cidade de Solano, no interior do Pará, condenado por matar um cabra e esfaquear outro. Como a justiça dos homens já o condenara, restava a Solano estender-lhe a mão. No meio da conversa, Denizar o surpreendeu. “Se você quiser, eu te faço uma guitarra muito melhor do que essa sua aí.” Solano aceitou meio que duvidando. As mesmas mãos que tiraram a vida de um homem seriam capazes de esculpir uma guitarra melhor que a dele? Meses depois, a encomenda estava pronta. Solano voltou à penitenciária e lá estava sua prometida: uma belezura de três captadores, cor de vinho, máscara preta e esculpida no cedro. “Com o tempo, acabei vendendo o instrumento. Como me arrependo”, diz ainda Solano.
As sementes da guitarrada chegaram ao Brasil pelo radinho de pilhas Sharp de três faixas que o menino Solano ouvia ainda em Abaetetuba. Quando tentava sintonizar as emissoras de Belém, seguia de chiado em chiado até pescar uma cumbia colombiana, um bolero dominicano ou um calipso hondurenho. Em vez de emissoras brasileiras, os rádios do Norte sintonizavam as ondas saídas das antenas do Caribe. “Foi assim que começamos esse estilo aqui no Pará. E digam o que q,uiser: assim como o axé é da Bahia, a guitarrada é 100% paraense.” Assim como o blues é de BB King, a guitarrada é de Mestre Solano.