Em uma publicação desejando um feliz Ano-Novo nas redes sociais na terça-feira (31), o músico Guilherme Arantes, 71, anunciou também uma pausa na carreira durante 2025. “Não estou dizendo adeus a nada, apenas um até breve”, informa Arantes no comunicado.
Na última quinta-feira (26), o cantor foi sido submetido a um cateterismo com angioplastia e, por conta do problema, tinha cancelado show de Réveillon em Santos e uma apresentação no Navio Roupa Nova, agendados, respectivamente, para 31 de dezembro e 3 de janeiro.
O cantor diz que o momento não é fácil para a indústria musical e afirma se sentir um “peixe fora do aquário”, “chateado e reflexivo”. Apesar do desabafo, ele diz que pretende retornar aos palcos em 2026.
Veja a seguir a íntegra do desabafo do artista, um dos maiores nomes da música popular brasileira. A reflexão sobre o mercado da música é muito válida.
“Feliz Ano Novo a todos. Nos vemos em 2026 ! Não, vocês não leram errado, nem eu me enganei . É isso mesmo : 2025 já está parcialmente traçado “para” mim, e parcialmente traçado “por” mim.
Não estou dizendo “adeus” a nada, apenas um até breve. Diferentemente da maioria dos meus colegas de profissão, sou um agente sem agenda.
Zero promessas, zero compromissos de prosseguir nessa toada compulsória chamada de “carreira”. Chuto o balde, me rebelo para sobreviver.
Não estou suportando mais, sou um bizarro replicante, desencaixado num jogo em que perdi o fio da meada.
Tenho um pé atrás em relação ao que chamarei genericamente de “processos coletivos” . O que é “coletivo” ? Multidão. Amontoamento de pessoas. Eu respeito tudo, mas posso ter desenvolvido uma sensação de estranhamento. Adoro tocar para as pessoas, tenho amor e intensidade na mensagem, na função pública.
Mas confesso que – não é de hoje – venho me sentindo um peixe fora do aquário.
E ainda mais agora, que tomei um tranco e me ví obrigado a “não estar” em dois eventos que serviriam pra eu me sentir “ainda servindo para alguma coisa”… nessa nova ordem artística que privilegia a festa, o encontro, a mistura, a “experiência imersiva” que o mercado de shows oferece.
Estou bem chateado e reflexivo, questionador, se querem saber. Não é um momento fácil. Seria bem mais fácil se eu relaxasse e curtisse a vida e saboreasse o sucesso, me entregando ao “play for cash” … mas não sou assim. Não sou exatamente um “performer” num mundo dominado pelo entretenimento.
Compositor compulsivo e compulsório por nascença e por escolha, às vezes sinto que não sirvo para muita coisa neste mundo, exceto para um seleto grupo – graças a Deus, agradeço e dou valor todos os dias – de apreciadores da minha evolução artística. Agradeço também ao Universo por me trazer a meio século de música com significado e consistencia de um amor incondicional.
Serventia para o showbiz é outra coisa.
Servi por um tempo… para ter essa utilidade imediata do entretenimento … pois quando a juventude e a moda musical de duas décadas me favoreceram… eu consegui performar um pouco e ajudar a “fazer a festa” que o mundo me cobrava…
Nào tenho sido infeliz com isso, muito pelo contrário. Dou mesmo muito valor, tenho muito orgulho de que a qualidade da nossa geração tenha conseguido se imprimir indelével e se perpetuar com grande durabilidade para o bem do mundo.
Não me obrigo a isso, mas me dou ao direito de ser um estranhão, como Lennon e Harrison, para ficar no âmbito dos dois mais delirantes da beatlemania…
Acho que estou velho e rabugento. Peguei bode. Talvez isso passe. Tomara.
Show, espetáculo, platéia, palestra, coaching, convenção, festa pública, balada, virada, carnaval, torcida, passeata, manifestação, congresso, comício, missa, tudo que é “coletivo” às vezes me parece questionável, manipulado, viciado e possivelmente perverso.
Não me entendam mal. Nosso mundo está quase que todo ele equacionado pela coletivização. Nem é questão de ideologias. É a Revolução de Ortega y Gasset em seu esplendor acachapante. É gente demais, um formigueiro.
O “entretenimento” em voga está aí colocado em substituição ao velho conceito de Arte. O Showbiz é movido pela “funcionalidade” , a gente sempre lê as críticas dos “Festivais” com a chamada característica : “O que funcionou e o que não funcionou” – esse é o mote da funcionalidade dos eventos de multidões.
Tudo gira em torno da álgebra das vendas, dos engajamentos, números de seguidores, de expectadores, de visualizações, de execuções, de streamings,
Tenho inveja absurda do Bach, um Kapellmeister, à luz de velas em Leipzig, fazendo uma cantata no órgao da igreja… pra mim Arte é isso. É querer demais? Sentir falta da Arte?
Quando eu era criança, existia o mundo fonográfico. E eu cresci sonhando em ser um compositor, um Vanzolini, um Jobim, um Johnny Alf. Meu pai colecionava discos, e os discos eram gravados nos estúdios, lançados pelos selos das gravadoras, com pompa e circunstância, nas lojas especializadas.
O disco era a única forma da música chegar ao mundo…
Era um luxo: maestros, arranjadores, músicos, estúdios, microfonões e mesas valvuladas caríssimas, todo mundo de terno e gravata, era um mundo de sonhos. Ahmet Ertegun arrumando o microfone para Ray Charles … Sinatra fumando um cigarro diante de um RCA Dx77.. as fotos de Elizete, Caymmi diante de um de um 44 BX … Luis Bonfá, Baden, Edu Lobo, Menescal, Carlos Lyra, Luiz Eça ! Meus heróis. E o Tom ? Vinícius ? Aí era covardia…
Ah… a música, a música, quanta paixão!
Adolescente, eu sonhava em ser Serge Gainsbourg, Gary Brooker, Ray Manzarek, Vangelis, Burt Bacharach, Ivan, Antonio Adolfo, Taiguara! Assisti ao auditórios da Record, no final dos anos 60, aos festivais da canção, onde os principais protagonistas eram os compositores.
Como não levar aquele conceito para o resto da vida ? Vi em ação, ainda mocinhos, Edu, Chico, Sidney Miller, Maranhão, Capinam, Vandré, Gil, Caetano, Tom Zé, e depois nos FICs, Guarabyra, Antonio Adolfo e Tiberio Gaspar, Nelson Motta, Danilo Caymmi, Zé Rodrix, Milton, Fernando Brant, Walter Franco, Taiguara, Ivan Lins e seu grupo do MAU, Aldir, Gonzaguinha, se eu esquecer aqui depois retifico…
Vejam bem: Os shows eram um complemento embrionário.
Artistas monumentais faziam shows em escala pequena, no máximo mediana. Nem existia toda uma tecnologia industrial, uma estrutura monumental que passou a favorecer especificamente os shows em escala industrial por toda parte, o “ao vivo” assumindo o principal negócio ao mesmo tempo em que se sucateava digitalmente o negócio fonográfico… O Showbiz simplesmente matou a música. Simples como a água mata o fogo.
Já que falei dos Beatles, é notável que, a partir do Rubber Soul, não fizeram mais shows e viveram para criar, em alguns anos, a obra mais importante do RockPop de todos os tempos… porque será que Lennon “pegou aversão” ao play for cash ?
John esculachava o “play for cash”. Hoje, essa aversão seria impensável, não é? Não seria não. Estou nesse limiar. O showbiz mata. A música não mata.
Com o tempo, foram proliferando os “performers” , os shows foram virando uma indústria, um grande circo “ao vivo”, as escalas das platéias foram se sucedendo… e chegamos ao que aí está. Onde fomos parar? O Showbiz engoliu a música, ao menos como eu sonhei a música.
Há quem diga que a música morreu! Será ?
Eu pergunto… porque nesta virada de chave… virada de ano… virada pessoal … eu, compositor, estou com a corda toda… e sei direitinho para onde é que eu devo seguir. O caminho me parece claríssimo, há uma clarividência na minha solidão.
O Kappelmeister me espera de braços abertos. Onde quer que eu vá. Estou perdido, mas … seria eu um visionário ?
Feliz ano Novo para o mundo. A gente se vê em 2026.