O vento rumoso do grande sul castigou duramente o inverno de 1913. Depois das chuvas de primavera, das queimadas de setembro, renasceu o desejo de vingança. Após o massacre do Irani, a caboclada ensandecida ficou vagando por mais de um ano pelos contrafortes da Serra do Espigão, o divisor de águas entre as vertentes do Negro e do Uruguai. As classes dominantes entraram de prontidão. Pois os jagunços retornaram aos magotes para a antiga Taquarussu, dizendo que se aproximava a hora da Guerra de São Sebastião.
Acreditavam que o profeta armado do Irani iria ressuscitar nos carrascais do Taquarussu. E não apenas ele voltaria à vida: todos os que haviam “se passado” no lado paranaense do rio do Peixe se ergueriam das tumbas e voariam para o lado catarinense numa gigantesca revoada de mortos-vivos, uma imensa horda molambenta e engrossar as hostes invisíveis e invencíveis do Exército Encantado, o legendário Colosso das nuvens.
Chefiava-os um fazendeiro de médio porte da região que não havia estado no Irani, mas adepto fanático de José Maria. Era Euzébio Ferreira dos Santos, um velhote visionário, dentuço, magrelo, ligeiro que passava os dias a repetir aos berros: “Feliz daquele, que avistar apenas a cola do cavalo branco de “seu” José Maria!!!”
Ele fundou o arraial de São Bom Jesus do Tanquarussu no dia 1.º de dezembro de 1913, cravando no centro da praça a espada de ferro do guerreiro morto e no alto de uma capelinha a cruz de Lorena da nova religião. Ali naquele planalto áspero e frio esperava a volta de seu messias, afirmando que ele viria correndo pelas nuvens, montado em seu cavalo branco ensilhado com armamento completo: lança de prata, facões de pau, boleadeiras de ferro…
Agitando bandeira do divino, ele aconselhou que o povo dos sertões da Serra Acima largasse tudo e se dirigisse para Taquarussu “com seus teres e haveras”: tal era a cidade encantada onde os velhos iam ficar moços, e os moços não morreriam nunca.
No começo de 1914, mais de trezentos caboclos com suas famílias já se encontravam no reduto de Taquarussu. E diariamente engrossava o populacho vindo de todos os quadrantes do sertão: Campos da Lapa, Vale do Rio do Peixe, carrascais do Iguaçu, coxilhas de Lages…
Quem entrava não saía mais. Depois de beijados os pés da estátua de São Sebastião, ninguém voltava para a sociedade dos “peludos”. Haviam decidido ingressar numa nova vida cheia de rezas, orações, flagelos e auto-flagelos, que começavam de madrugada e entravam pela noite adentro. Quem ousasse se esquivar dos sacrifícios religiosos, levava uma surra de vara de marmelo e ainda tinha os vergões da pele borrifados com salmoura grossa. Quem mentisse também apanhava. Os homens raspavam cabelo e barba à navalha, quebrando as máscaras da antiga sociedade: julgavam-se até mesmo membros de uma outra raça: uma “Irmandade Santa”: os “pelados” de José Maria contra os “peludos” da República…
Para tentar dialogar com a caboclada, foram enviados vários emissários à região, dentro da tradição conciliatória brasileira. Um deles foi Frei Rogério, antigo camponês da Baviera, conhecedor da alma dos simples, confidente e conselheiro do povo. Paternal, culto, acostumado a passar a mão na cabeça dos humildes, foi um dos primeiros a ver que os ânimos estavam se alterando nos sertões. Tentou apaziguar e ajeitar, convidando todos de volta “à casa do Pai”. Mas a resposta dos fanáticos, pela voz rouca de Euzébio, foi violenta. Levantando bem alto o facão de pau de três quinas, ele berrou, segundo testemunhas: “Liberdade! Estamos vivendo num novo século… E se o mundo durou mil anos, outros mil, não durará!!!”
(O fato é que todos eles em breve iriam se transformar -isso sim – nos “errantes do novo século” – e então seriam obrigados a arrojar a fronte ao pó.)
Mas apesar das bravatas, o ladino Euzébio percebeu, depois da visita do padre, que o ataque a Taquarussu não iria demorar muito. E se articulou com um mulato nordestino refugiado na região – o desertor Venuto Baiano – para que desse instrução de combate aos matutos.
Além das armas conquistadas em Irani, Winchester, Comblains e Mausers começaram a ser adquiridas no litoral, de onde vinham em lombo de burro. O mulherio fabricava pesados porretes das madeiras mais duras do sertão: araçá, carne-de-bugre, açoita-cavalo, guaramirim… Ao se armar, a caboclada assumia um novo status: passavam a ser jagunços que agora não só rezavam, mas também davam gritos medonhos de guerra. Lá dentro de suas cabeças, nos seus sonhos e nas suas visões, deixavam de ser simples matutos para se transformar em “acauãs”: guerreiros imbatíveis e invisíveis do Exército Encantado de São João Maria e de “Seu” José Maria – o profeta e o apóstolo dos carrascais catarinenses…
Estavam feitos! Suas cabeças estavam feitas: agora ia ter início sua tragédia…
O misticismo e a reação monarquista se acentuaram no reduto de Taquarassu. Primeiro foi um filho de Euzébio, chamado Manuelzinho, que anunciou ter visões de “seu” José Maria. Embrenhava-se em matagais de onde saía dando gritos de “vivas” para os profetas, para os poderes imperiais. Tinha crises convulsivas de choro que contagiavam todo o acampamento e levava a multidão ao delírio histérico. Chegava a se fingir de morto e organizava velórios de onde “ressuscitava” dizendo frases obscuras. Até o dia em que foi destituído de suas funções sacras por ter “feito mal” a duas meninas.
Foi substituído pelos netinhos de Euzébio – Teodora e Joaquim – que também passaram a ter visões e a exigir dos fiéis penitências adoidadas como ficar deitado de bruços por uma semana, ou fazer longos jejuns. Quem desobedecesse levava uma surra de vara de marmelo.
A nobre classe dos cavaleiros “Doze Pares de França” foi reativada e tinha por missão percorrer as fazendas ao redor para pedir gado emprestado ao açougue da santa religião. Foi nessa ocasião que o ladino Euzébio articulou (com alguém de certa cultura) a edição de uma “Carta aberta à Nação”, assinada por um fazendeiro chamado Manoel Alves de Assunção Rocha, a quem antepuseram ao nome um “Dom”. E o proclamaram “Imperador na Monarquia Sul Brasileira”. O texto do manifesto é curioso e elucidativo. Êi-lo, na transcrição do Relatório Militar Demerval Peixoto (Rio, 1416):
“Eu, D. Manoel Alves de Assunção Rocha, aclamado imperador constitucional da Monarquia Sul Brasileira, em 1.º de agosto do corrente ano, com sede no reduto de Taquarussu do Bom Sucesso, convido a nação para lutar para o completo extermínio do decaído governo republicano, que durante 26 anos infelicita esta pobre terra, trazendo o descrédito, a bancarrota, a corrupção dos homens e, finalmente, o desmembramento da pátria comum.
“Comprometo-me:
1.º) Em pouco tempo a eliminar o último soldado republicano do território da Monarquia, que compreende as três províncias do sul do Brasil – Rio Grande, Santa Catarina e Paraná;
2.º) Para o futuro, anexar ao Império o Estado Oriental do Uruguay, antiga Província Cisplatina;
3.º) Organizar um exército e armada dignos da monarquia e reorganizar a guarda Nacional;
4.º) Dar ao país uma Constituição completamente liberal;
5.º) Reduzir os impostos de exportação e importação e bem assim estabelecer o livre câmbio dentro do território do Império;
6.º) Fazer respeitar meus súditos, logo que me seja possível, em qualquer ponto do planeta;
7.º) Fazer garantir a inviolabilidade do lar e do voto, tão menosprezados pelo decaído regime:
8.º) Fazer respeitar, em absoluto, a liberdade da imprensa, também menosprezada pela antiga República;
9.º) Tornar inexpugnável a barra do Rio Grande e de todo o litoral do País;
10.º) Guarnecer a fronteira com o Estado de São Paulo e fronteira argentina, logo que seja reconhecido oficialmente o novo império e organizado o exército imperial;
11.º) Assumir, relativamente, todos os compromissos do antigo regime, que relativamente couberem ao Império Sul Brasileiro.
12.º) O exército imperial será a primeira linha e a guarda nacional a segunda linha;
13.º) Unificação da lei judiciária do País;
14.º) Restringir a autonomia dos municípios;
15.º) Emitir provisoriamente numerário nominal e em seguida a conversão metálica;
16.º) A religião oficial será a católica apostólica romana;
17.º) Liberdade de culto;
18.º) Cogitar do desenvolvimento da lavoura, sem desprezo do Império;
19.º) O imposto protencionista a indústria e lavoura do Império;
20.º) Livres os portos do Império a todo o estrangeiro sem contagiar-se de raça, crença, etc…
21.º) Serão considerados nacionais todos os estrangeiros que residirem dois anos no País;
22.º) Modificar o atual sistema de júri, que não está mais compatível com o século;
23.º) O ensino será obrigatório, tanto para a infância como para o exército;
24.º) A criação do exército aviador que atualmente está dando resultado na guerra européia;
25.º) Edificação da Corte Imperial, que será no centro do território Imperial;
26.º) A bandeira e coroa do Império Sul Brasileiro será adaptado as antigas da década Monarquia Brasileira;
27.º) A pena de morte em vigor, com a forca;
28.º) O serviço militar está obrigatório;
29.º) À agricultura nacional será dada uma área de terra independente de pagamento, em terras nacionais;
30.º) De 1.º de setembro em diante entrará em vigor a lei marcial aos inimigos da Monarquia. Viva a Monarquia Sul Brasileira! Deus guarde e vele pela Monarquia! Reduto do Taquarussu do Bom Sucesso, 1914.
O Imperador Constitucional da Monarquia Sul Brasileira – D. Manoel Alves de Assunção Rocha.”