A TV Globo repetiu a fórmula bem-sucedida do ano passado (com “Maysa”) e lançou “Dalva e Herivelto – Uma Canção de Amor”, segunda minissérie que trata sobre personagens reais da música popular brasileira. E novamente foram escolhidos figuras controversas, artistas de raro talento, mas que misturaram demais a vida e a arte.
Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, dois dos gênios da história da MPB, formaram o casal mais famoso do Brasil na década de 1940 -eram uma espécie de, guardadas as proporções, William Bonner e Fátima Bernardes ou Angélica e Luciano Huck daquela época. Herivelto já era famoso quando conheceu Dalva. Era um compositor de sambas e marchas para Francisco Alves, Sílvio Caldas e Carmen Miranda, por exemplo. Estava prestes a lançar o clássico Praça Onze, em parceria com Grande Otelo. Ela, ainda jovem, começava na carreira e se apaixonou pelo homem e pelo compositor. Ao lado de Nilo Chagas, formaram o Trio de Ouro, em determinado momento da década de 1940 o maior sucesso da música brasileira – artistas principais da mítica rádio Nacional. Faziam shows por todo o País, mas tinham como porto seguro o Cassino da Urca. Isto até 1946, quando o presidente Eurico Gaspar Dutra fechou os cassinos e desempregou milhares de artistas.
Mulherengo, Herivelto começou a ter vários casos extraconjugais (que Dalva reagia com irritação, bebedeiras e casos de “vingança’), até eles se separarem em 1949, após uma tumultuada excursão pela Venezuela com a companhia de teatro de revista da atriz Dercy Gonçalves.
Os dois seguiram caminhos distintos na vida a partir dali, tiveram outros casamentos e filhos. Dalva morreu em 1972, Herivelto em 1992. Esta é a história que, romanceada, se viu na televisão. Afinal, por mais musicais que sejam, Dalva e Herivelto viraram minissérie porque eram um casal em permanente ebulição, uma parceria que, se não fosse real, certamente seria de novela – assim como Maysa chegou à TV por ser uma personalidade extravagante, com a música sendo um elemento a mais nesse caldeirão. A história que não terá tanta atenção da mídia é a que nos interessa aqui. No momento em que Herivelto Martins começou a se relacionar com outras mulheres, ele passou a ser “vigiado’ por Dalva e pelos amigos do casal. Mas, por mais que ele desmentisse qualquer “pulada de cerca’, o compositor começou a se entregar inconscientemente, nas músicas que compunha. Em 1946, início da crise do casamento, ele passou a Francisco Alves as canções Não Me Conheço Mais e Quero Esquecer, ambas em parceria com Ewaldo Ruy. No ano seguinte, teve seu maior sucesso popular com Segredo, composto especialmente para Dalva – é um petardo que tenta recuperar o amor da esposa: “O peixe é pro fundo das redes / segredo é pra quatro paredes / não deixe que males pequeninos / venham transtornar o nosso destino / o peixe é pro fundo das redes / segredo é pra quatro paredes / primeiro é preciso julgar / pra depois condenar…”.
Mas no mesmo 1947 ele cede Caminhemos a Francisco Alves. A canção é definitiva, e marca a ruptura de Herivelto com Dalva. “Não, eu não posso lembrar que te amei / não, eu preciso esquecer que sofri / faça de conta que o tempo passou / e que tudo entre nós terminou / e que a vida não continuou pra nós dois / caminhemos, talvez nos vejamos depois…”. E pouco depois lança Pensando em Ti, que é um galanteio a Lurdes Torelly, amante que virou esposa. “Eu amanheço pensando em ti / eu anoiteço pensando em ti / eu não te esqueço / é dia e noite pensando em ti…”. Dalva acusou o golpe, partiu em carreira solo e começou a lançar canções que tinham tudo a ver com seu rompimento com Herivelto – mas, claro, não compostas por ele. Canções como Tudo Acabado, Errei Sim e Que Será (“Que será / da minha vida sem o seu amor…”), que é referencial de um estilo de interpretação que teve eco em Ângela Maria, Elis Regina, Maria Bethânia, Ângela Rô-Rô e até mesmo Ana Carolina. E a polêmica entre Dalva e Herivelto também acabou revelando, involuntariamente, o talento de Lupicínio Rodrigues, que começou a fazer sucesso com as suas composições retratando romances fracassados, como Nunca e Vingança (“Mas enquanto houver força em meu peito / eu não quero mais nada / só vingança, vingança, vingança / aos santos clamar…”). E deu vazão aos sambas contemporâneos de Dorival Caymmi, como Nunca Mais, Nem Eu e Não Tem Solução.
Quase todas as composições citadas acima, a partir do início da crise do casamento entre Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, são sambas ou boleros. Mas, acima de tudo, foram as canções que criaram a base da moderna música romântica brasileira. Tudo que se produziu a partir de 1950 tem relação direta com estas músicas, seja na forma, seja no conteúdo – é só ouvir canções como Detalhes (Roberto Carlos / Erasmo Carlos), Pra Você (Sílvio César), Mil Perdões e Atrás da Porta (Chico Buarque, esta última com Francis Hime). Não fosse por conta de um rompimento terrível, seria um considerável legado do casal à cultura brasileira.