Jean Genet integrou durante cinco anos a Legião Estrangeira, depois de fugir de um orfanato. Isto ocorreu nos anos 30 quando esta unidade militar da então França colonial já tinha normas condizentes com o exército moderno. Não era mais o bando de foras da lei que contraditoriamente nela se abrigava a serviço do governo, assunto de romances e de cinema. Mesmo assim, continua a ser uma força bélica de conhecida brutalidade, criada no século 18 e atuando sobretudo na África e, ao lado do Brasil, na Guiana Francesa.

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Genet passou cinco anos nesse meio totalmente masculino até desertar, em 1935. É possível que resida aí a matriz de Esplêndidos, peça sobre bandidos, seus códigos implícitos, atitudes perversas e noção de poder pela força. No caso, eles estão em um hotel, encurralados pela polícia que, no entanto, mantém certa cautela porque no local se encontra uma mulher, e as autoridades não sabem o que aconteceu com ela. Genet manipula a dupla tensão entre o que chegará de fora e o que oito criminosos vivem no espaço fechado. Como é característico no escritor, a realidade deixa de ser a única possibilidade de enredo.

Dentre os homens, há um policial que se bandeou para os delinquentes, situação dúbia como as relações de todos entre si. O descontrole pode irromper a qualquer momento entre o delírio de cada um e a solidariedade precária vigente no grupo. O espetáculo de Eduardo Tolentino, um encenador fiel ao poder da palavra e não dos meros efeitos cênicos, expande esta estilização do verdadeiro e do falso em termos de movimentos de tango, gênero de dança e música baseado na sedução e no controle do outro (o tango originalmente era praticado apenas por homens no baixo mundo de Buenos Aires, daí a razão de os participantes não se olharem de frente, estão sempre de rostos virados). O efeito do contato físico sugere luta marcial e a homossexualidade sempre exaltada pelo dramaturgo. Bailam como adversários.

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A vida de Genet (1910-1986) tornou-se lenda acima da literatura, e ele um personagem de si próprio. Filho enjeitado, criado pela assistência pública, andarilho e ladrão que por acúmulo de penas chegou praticamente à prisão perpétua até ser anistiado em 1948. Porém, nunca se diz quais foram, afinal, seus delitos. É certo que não cometeu crime de sangue e são vagas as informações sobre os roubos: se furtos ocasionais ou assaltos com violência (pouco provável, Genet não era fisicamente agressivo).

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Teriam sido mais pequenos episódios de delinquência. Enquanto a Europa sofria a Segunda Guerra, com a França ocupada, ele mergulhou no submundo de vários países. A partir daí, criou a sua ficção biográfica e a sua escrita, até ser descoberto no cárcere francês por intelectuais conquistados por uma poética soturna. Assim, surge o Jean Genet com estilo e imaginário que o levariam à consagração. Arte resumida pelo ensaísta norte-americano Robert Brustein em O Teatro de Protesto: “Genet extrai seus mitos das profundezas de um inconsciente totalmente liberto, em que a moralidade, a inibição e o refinamento e a consciência não influem”.

Os mais empenhados poderão se dedicar às quase 700 páginas de Saint Genet de Jean Paul Sartre, livro que é mais Sartre defendendo seu existencialismo por intermédio de Genet. Não custa admitir, porém, que este homem tem, sim, mistério e gênio. É o que Eduardo Tolentino e o grupo Tapa mostram com sombria fulguração (algo luciferino, bem genetiano). O espetáculo revela o travestimento mental e físico de pessoas que ultrapassaram a chamada normalidade. Chegaram à grandiosidade da sordidez, entenda quem puder, mas vale a pena observar. É o que Esplêndidos propõe com bons atores, a maioria em começo de carreira e o tarimbado Sérgio Mastropasqua. Todos representam fielmente uma convicção de Jean Genet, que morreu sozinho em um pequeno hotel parisiense: somos todos condenados a uma reclusão solitária no interior de nossa pele.

ESPLÊNDIDOS

Teatro Aliança Francesa.

Rua General Jardim, 182. Tel.: 3017-5699 ramal 5602. 5ª à sab., 20h30. Dom., 19h. R$ 10/R$ 20.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.