No fim de semana, uma sessão de curtas já havia introduzido o tema do sexo na Mostra de Tiradentes. Em Action Painting números 1 e 2, Krefer e Turca propuseram um interessante contraponto. Filmando a relação sexual de um casal (eles? Não houve debate), mostraram a cena de dois ângulos. No primeiro, ele aparece de costas, abraçado pela parceira, que rasga, com suas unhas longas (afiadas?) a carne do homem. Na segunda, ele aquece a relação despejando cera de vela fervente na companheira. Os filmes não têm som. Teria sido uma gritaria dos infernos. O programa passou à tarde, havia crianças na plateia.
Na segunda à noite, o sexo voltou com tudo na abertura da Mostra Aurora em O Animal Sonhado. O longa foi realizado por um coletivo cearense. Vale citar os nomes dos criadores dos seis episódios – Breno Baptista, Luciana Vieira, Rodrigo Fernandes, Samuel Brasileiro, Ticiana Augusto Lima e Victor Costa Lopes -, mesmo que, no filme e no debate realizado ontem, eles não tenham se preocupado em individualizar suas contribuições. Seis episódios, uma só visão (autoral). Uma das diretoras (Luciana) chegou a dizer que, em cada segmento, havia no set um realizador e cinco assistentes (os demais integrantes do coletivo), todos palpitando, contribuindo. Perdeu-se, talvez, tempo demais falando das condições de produção. Filme barato, feito a troco de nada, com base na amizade e no afeto que permeia as relações do grupo.
Essa questão do afeto não é o que passa na tela. É quase o contrário. Com exceção do primeiro segmento – dois garotos que terminam formando um par -, as histórias vão ficando cada vez mais dissonantes, introduzindo uma espécie de ruído nas relações (e no sexo). Os garotos do primeiro segmento vão a uma festa, mas distraem-se no caminho (aquela distração). Outros dois garotos marcaram de se encontrar com eles. Há sugestões de que um seja gay, o outro faz sexo com uma jovem no terraço do prédio. Garoto, ele frequentava aquele lugar e ouvia histórias de um monstro que habitaria o lugar. Sexo concluído, ele olha para a garota de um jeito estranho. Pode ser que esteja vendo nela esse monstro, pode ser que se decepcione por ela não ser.
As mulheres, de qualquer maneira, são poderosas. Uma frequenta uma academia. Tem um êxtase, senão exatamente orgasmo, fazendo ginástica, o que é muito mais que lhe proporciona o homem com quem faz sexo (e que tem ejaculação precoce). A coisa complica-se. Um pai deseja a própria filha. Um grupo entrega-se a jogos de sexo numa casa e, quando a mulher procura o marido, surpreende-o no pós-coito com outra. Se o negócio é sonho, o último episódio é sobre uma mulher que desperta uma aura de desejo por onde passa – e termina fazendo sexo com vários homens e mulheres. Do par gay, o único que encerra o sexo com naturalidade, todos os demais episódios introduzem dissonâncias, desarmonias.
O condutor do debate definiu O Animal Sonhado como uma espécie de Decameron cearense, buscando uma ponte com o início da trilogia da vida de Pier Paolo Pasolini. Talvez seja muito mais Stanley Kubrick, De Olhos Bem Fechados, a ideia do coito interrompido. Há aqui embutida, como em Action Painting 1 e 2, uma ideia de violência, mesmo consentida, de prazer próprio, que seria muito mais interessante de discutir que os eternos problemas de produção. Não é um grande filme, é muito mais um rascunho, mas intrigante.
E se é verdade que a Mostra de Tiradentes, como um todo, está discutindo o lugar do cinema (no mundo, no imaginário dos espectadores), um filme como O Animal Sonhado e curtas como Action Painting 1 e 2 colocam outra questão mais pontual, específica. Como se filma o sexo? Quais os limites entre pornografia e erotismo? O sexo, na verdade, já estava aqui desde o início, com Órfãos do Eldorado, de Guilherme Coelho, na homenagem a Dira Paes. A chapa anda fervendo, a libido à solta, aqui no interior das Gerais.