Foi um ano cheio de comemorações. A efeméride principal do 2008 cultural, o cinqüentenário da Bossa Nova, foi festejada com centenas de shows, eventos, mostras, CDs, DVDs e livros. Foram homenageados todos os responsáveis pelo estilo que alterou a música mundial, provocou uma revolução de costumes no Brasil e que foi (por incrível que possa parecer hoje) a primeira “onda jovem” do País.
Os vivos, como Carlos Lyra, Johnny Alf, Roberto Menescal, Wanda Sá, Marcos Valle e tantos outros, não pararam no Rio de Janeiro, foram para todos os cantos do planeta relembrarem seus sucessos. Os que já partiram, como Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Newton Mendonça, foram lembrados a cada instante.
Mas está passando o ano, 2009 está chegando. E o grande responsável por toda esta revolução apareceu por apenas dois meses e depois sumiu. Hoje voltou ao quase esquecimento a que foi relegado pela indústria cultural brasileira. Mas quem é ele mesmo? João Gilberto Prado Pereira de Oliveira é, em parte, culpado pelo próprio esquecimento.
Há mais de 25 anos vivendo recluso, em um apartamento no Leblon, área nobre do Rio de Janeiro, o cantor, violonista e compositor prefere a solidão à convivência. Não consegue mais passear como seus iguais. Só sai à rua para cumprir suas obrigações de artista (shows e uma insólita participação em um comercial da Vale). De resto, comunica-se com os poucos amigos por telefone e não conhece sequer o cidadão que entrega seu almoço e seu jantar. Agindo assim, fica difícil manter viva uma chama de cinqüenta anos.
Mas a outra parte culpada está fora do pequeno mundo de João Gilberto. Para o que se considera hoje “música popular”, a Bossa Nova não serve. Acima do estilo musical, o que interessa é a “atitude”, aquela que é revelada não nas músicas e nos discos, mas no dia-a-dia das ditas celebridades. Hoje, importa mais saber quem Madonna beijou no Brasil do que como foram suas apresentações no Rio de Janeiro e em São Paulo. No início da semana, um site de fofocas tinha esta como sua principal manchete: “Ivete Sangalo curte momento preguiça em casa”.
O texto? “Ivete Sangalo está com preguiça. A cantora postou estas fotos em seu blog, onde aparece de camiseta deitada em sua cama e brincando com sua cachorrinha. Ela ainda escreveu o seguinte comentário: “Eu tava precisando dessa moleza. Amo voltar para minha casinha e ter tempo de bater papinho com vocês”. Então tá, Ivete, você pode! Segunda é o dia internacional da preguiça, mesmo!”.
Neste mundo João Gilberto não cabe. João se apresenta de terno, tem uma vida (apesar de reclusa) “normal”, quer simplesmente fazer boa música – e por isso reclama do sistema de som e do ar-condicionado de determinadas casas de espetáculo. E tocar violão e cantar não estão entre as principais virtudes esperadas pelos empresários para um músico fazer sucesso.
João, com seu jeito meio estranho, mudou a história da música mundial. Como diz o jornalista e pesquisador Zuza Homem de Mello, somente com Tom Jobim e Vinícius de Moraes haveria uma “apenas” música brasileira sofisticada. Com João Gilberto, surgiu a Bossa Nova, um gênero que não tinha explicação e nem genealogia – apesar de muitos “estudiosos’ garantirem que ela vem do jazz.
A Bossa de João, a Bossa Nova original, não é a Bossa que foi apresentada nos shows realizados em todo o País. Nem mesmo nas apresentações de Roberto Carlos e Caetano Veloso, que foram próximas, mas não tinham a essência. João Gilberto trouxe do samba a sua “receita”, sintetizando todas as batidas em uma só. Tom disse na apresentação do primeiro disco de João, Chega de Saudade: “Quando o violão acompanha João, o violão é ele.
Quando a orquestra o acompanha, a orquestra é ele”. Ouça com atenção qualquer música dele, prenda sua atenção à junção voz-violão, e perceba que nada mais é necessário. A Bossa de João está toda contida ali, o resto é supérfluo.
E é por isso que poucos se atrevem a regravar clássicos de seu repertório. Músicas como Aos Pés da Cruz, Preconceito, Louco, Lígia e Da Cor do Pecado não ficam iguais com outros intérpretes. Mesmo as manjadíssimas Chega de Saudade, Desafinado e Garota de Ipanema têm outra cara quando cantadas por João Gilberto.
João criou a Bossa Nova. Hoje, mesmo longe dos holofotes, ele ainda é grande. Talvez maior que a própria Bossa. E, quem sabe, o 2009 que está chegando seja um ano de reverência ao maior cantor da história da nossa música popular.
cristiantoledo@oestadodoparana.com.br