Plano preliminar de urbanismo de Curitiba
Em Curitiba, a segunda experiência marcante do Século XX foi deslanchada vinte anos depois do Plano Agache e dez após a inauguração do Centro Cívico, com as propostas do estudo da Serete em consórcio com o urbanista Jorge Wilheim(22), tornando-se paradigmática na história recente do urbanismo brasileiro.
Para tanto, muito contribuiu a criação do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Paraná em 1961, pois estabeleceu-se um caldo de cultura arquitetônica e urbanística propício à experimentação de novas soluções. Tanto que professores, recém-formados e formandos do curso foram os principais colaboradores da equipe que fez o Plano Preliminar Urbanístico de Curitiba em 1965.
Nessa ocasião, o perímetro urbano da cidade já praticamente se confundia com os limites municipais. A malha urbana, no entanto, apresentava duas linhas de descontinuidade ao sul e a sudeste.
Primeiro, a rodovia BR-2 (atual BR-116), de transposição difícil pelo seu intenso movimento de transporte pesado dada sua condição de ser a única ligação viária entre São Paulo e o Sul do Brasil.
Depois, a depressão correspondente à calha do Rio Iguaçu, sujeita a inundações periódicas e onde enormes cavas de exploração de areia davam o tom surrealista de crateras lunares à paisagem, sem falar que também se constituía no eixo estabelecido para o anel ferroviário, que retiraria a estrada de ferro de seu leito no centro da cidade, paralelo às Avenidas Sete de Setembro e Capanema.
Rompendo a estrutura radioconcêntrica, o plano urbanístico concebido por Jorge Wilheim previa crescimento linear para a cidade, ordenado em cima de vias estruturais, que em alguns casos aproveitavam a caixa das avenidas projetadas, décadas antes, por Agache.
Este foi o caso da Via Estrutural Sul, formada pelo trinário das avenidas Visconde de Guarapuava, Sete de Setembro e Silva Jardim, que se desdobrava para sudoeste centrado na República Argentina para chegar até a BR-116 no Pinheirinho, depois de passar pelo Portão e pelo Capão Raso (podendo também continuar mais para oeste pela BR-476) e para sudeste pela Avenida Capanema até engatar na Rodovia Curitiba Paranaguá – BR-277, no seu cruzamento com a BR-116.
A nordeste, a Via Estrutural Norte também fazia um trinário com base na Avenida Paraná, no Bacacheri, iniciando-se próxima ao trevo do Atuba na BR-116. Depois desviava para o centro da cidade pela Avenida Cândido de AbreU, seguindo para oeste pela Rua Padre Anchieta até conectar-se com a BR-277, que vai para Ponta Grossa.
De certo modo, a articulação das vias estruturais urbanas com as rodovias que ligavam Curitiba ao restante do território vizinho respeitava a gênese da ocupação do terraço dos Campos Gerais de Nossa Senhora dos Pinhais, berço do espaço metropolitano.
Curitiba orientou-se para crescer na direção nordeste-sudoeste. Os ônibus expressos na calha central das vias estruturais passaram a cruzar o centro, cobrindo a cidade de ponta a ponta. No entanto, a mancha urbana permanecia com sua forma de pêra, podendo ser percebida a força do vetor sul de crescimento – apesar deste não ser contemplado no planejamento – ultrapassando a BR-116, saltando por sobre as várzeas do Rio Iguaçu e ligando-se a São José dos Pinhais (23), principalmente pelo prolongamento da Avenida Marechal Floriano, que corta a Vila Hauer e o Boqueirão.
Convém recordar que, por ocasião da concorrência do plano diretor ganho pela equipe do urbanista Jorge Wilheim e da Serete, uma proposta alternativa de outro concorrente, patrocinada pela Urbs, visava a criar um novo centro de negócios na várzea do Rio Iguaçu, depois do Quartel do Boqueirão. Talvez por isso mesmo o plano que venceu negava peremptoriamente a idéia de crescimento para sul-sudeste. (24)
Porém, após a institucionalização do planejamento municipal em Curitiba com o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba – Ippuc, a visão urbanística local começou a curvar-se à realidade do avanço da malha urbana para o sul, com projetos como o viaduto sobre a BR-116 na Avenida Marechal Floriano Peixoto, primeiro com apenas uma pista com duas faixas e depois duplicado, e com a abertura da Avenida das Torres.
Enquanto Curitiba começava a organizar o seu desenvolvimento, as demais estruturas urbanas metropolitanas continuavam como núcleos periféricos, as mais próximas muitas vezes como cidades dormitórios – as outras como prestadoras de serviços para o entorno rural. Basicamente se constituíam de uma rua principal e da praça da igreja, tecido urbano que aos poucos era completado por ruas paralelas e transversais.
As cidades mais equipadas eram São José dos Pinhais e Campo Largo, que até a década de 70 se alternavam como o segundo lugar em população na região metropolitana. Veja-se, no entanto, que a população de Curitiba estava próxima a 600 mil habitantes no final da década de 60, ao passo que Campo Largo tinha ao redor de 15 mil habitantes urbanos e São José dos Pinhais cerca de 20 mil. Isto é, a disparidade era imensa pois o pólo metropolitano era 30 a 40 vezes maior que as cidades que lhe seguiam no ranking. A guisa de comparação, pelo Censo de 2000 a população do município de Curitiba era cerca de oito vezes a do município de São José dos Pinhais.
Do ponto de vista econômico, destacavam-se:
* São José dos Pinhais, com a facilidade do aeroporto apoiando iniciativas como a produção de essências aromáticas ou de alimentos industrializados voltados ao mercado nacional;
* Campo Largo, que desfrutava de tradição industrial no ramo da cerâmica porcenalizada, tanto para os jogos de jantar disputados por quem queria montar seu enxoval, quanto para os azulejos, ambos renomados nacionalmente;
*Araucária, por ter sido escolhida para sediar a refinaria da Petrobrás; e Rio Branco do Sul, sobre a qual a sua então poderosa indústria cimenteira mantinha um permanente véu de poeira branca.
Visão metropolitana: PDI 1978
Cerca de dez anos depois da realização do Plano Serete/Jorge Wilheim em Curitiba, estabeleceram-se regiões metropolitanas no Brasil, através de lei complementar. Foi resultado da preocupação dos governos militares com a solução a ser dada aos problemas de infra-estrutura urbana comum dos municípios da Grande São Paulo – que a essas alturas começava a experimentar tanto as deseconomias de escala do crescimento desenfreado (expresso no lema “São Paulo tem que parar”) quanto a força do movimento operário premido pelas condições de vida e de trabalho nos parques industriais periféricos do chamado ABC paulista – como também das reações políticas relacionadas com a fusão do ex-distrito federal do Rio de Janeiro com os municípios da Baixada Fluminense e com Niterói, ex-capital do Estado do Rio de Janeiro, que resultou em um espaço totalmente desarticulado como estrutura urbana.
Era ainda uma maneira de se forçar a subordinação do poder dos municípios metropolitanos (cujos prefeitos eram eleitos diretamente pelo povo, enquanto o prefeito da capital era indicado pelo governador do Estado, que por sua vez era indicado pelo governo federal) à instância estadual, que geria as estatais responsáveis por transporte de massa (metrô), no caso de São Paulo e Rio de Janeiro), saneamento básico (água e esgotos), energia elétrica e telecomunicações. Pelos critérios de população adotados, a Grande Curitiba foi incluída nas nove regiões estabelecidas, pela Lei Complementar n.º 14.
Logo após a criação do órgão metropolitano, seu planejamento faz uma análise da evolução urbana de Curitiba e, junto com o urbanismo municipal, endossa o vetor para o sul. Realiza a pavimentação da Avenida das Torres com recursos metropolitanos repassados a fundo perdido pelo governo federal, oriundos do então imposto sobre combustíveis. Ao mesmo tempo o município da capital lança o viaduto sobre o novo anel ferroviário e melhora as condições estruturais das pontes sobre o Rio Iguaçu.
Com a publicação do Plano de Desenvolvimento Integrado pela Coordenação da Região Metropolitana de Curitiba – Comec -, em 1978, a estruturação da Região Metropolitana de Curitiba reverte de sentido, como aliás já apontava a escolha do símbolo do órgão metropolitano, com duas setas entrelaçadas. De uma situação em que a metrópole era o centro atrator único, inicia-se uma reação centrífuga, voltada aos municípios limítrofes. Com um organismo vivo, a cidade passa por momentos de contração e de expansão, ou sístole e diástole.
Pela Avenida das Torres estabelece-se uma ligação franca com São José dos Pinhais e, por conseguinte, com o aeroporto e com a BR-468, principal rodovia de acesso ao Sul do Brasil. Em seguida realiza-se a conexão daquela via com a BR-277 (Curitiba-Paranaguá) através da Avenida Rui Barbosa em São José dos Pinhais. Assim implanta-se a ligação viária tangencial que permitiu várias novidades na organização do território, como a possibilidade de ligação direta dos caminhos rodoviários do sul e do norte para o Porto de Paranaguá, e, com isso, a caracterização de um eixo estrutural com forte vocação industrial.
Esse foi o movimento que acabou repercutindo, mais adiante no tempo, na formação do pólo automobilístico metropolitano nos anos finais do século XX.
Porém também é gerada uma forte demanda espacial sobre a calha do Rio Iguaçu, com inflexões a leste sobre os seus córregos formadores que descem da Serra do Mar sobre a tomada d’água do sistema de abastecimento em Piraquara, que é a base da adução para o lado oeste da Região Metropolitana.
De forma geral, a mancha urbana de Curitiba cresceu forçando os limites municipais. Formou-se a conurbação com Colombo, pois a ligação entre os municípios era a continuação da Via Estrutural do Bacacheri, a norte-nordeste. Sua execução fez a oferta de infra-estrutura – inclusive a de transportes coletivos – anteceder a demanda e provocou o súbito aumento do custo dos terrenos, bloqueando a ocupação por edificações e propiciando a ida para esse município, vizinho ao pólo, das pessoas à busca da possibilidade de terra mais em conta.
O mesmo ocorreu no norte, em seguida, com Almirante Tamandaré progredindo em direção a Rio Branco do Sul. Somente Bocaiúva, por estar mais longe e circundada por topografia mais difícil, escapou dessa lógica de crescimento.
A leste, uma vez vencido o umbral da Rodovia BR-116, a conurbação com Campina Grande do Sul, Quatro Barras e Piraquara – estas duas por caminhos diferentes, a primeira pela rodovia e a outra pela Estrada do Encanamento – também tornou-se inevitável. Antes, a solda das malhas urbanas tinha acontecido primeiramente com Pinhais, o que provocou sua elevação a município autônomo desmembrado de Piraquara.
Vicente de Castro Neto
é arquiteto e urbanista.Formado na primeira turma do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Paraná em 1966, onde depois foi professor regente de Teoria do Planejamento e de Planejamento Urbano e Regional. Participou da equipe do Plano Preliminar de Urbanismo de Curitiba, tendo também criado e coordenado o órgão responsável pela Região Metropolitana de Curitiba – Comec, ao mesmo tempo que dirigiu a elaboração do Plano de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana, publicado em 1978.INotas e referências bibliográficas
(22) Sociedade Serete de Estudos e Projetos & Jorge Wilheim – Arquitetos Associados. Plano Preliminar de Urbanismo de Curitiba. Curitiba: IPPUC, 1965.
(23) Como é mostrado nos esquemas urbanos de 1955, 1965 e 1975.
Coordenação da Região Metropolitana de Curitiba. Plano de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Curitiba – Organização Espacial. Curitiba: Comec, 1978.
(24) “Desejamos insistir no caráter inorgânico desta ampliação de Curitiba para o lado leste da BR-2. Se houve ocupação, de densidade baixa, na região sudeste, além da BR-2, tal fato parece-nos prender-se principalmente à oferta feita por loteamentos de instalação barata. Além deste fato, é inegável que a posição das duas estradas de acesso, da BR-59 e de São José dos Pinhais (a velha, pela Salgado Filho e a nova, pela Marechal Floriano), marcaram uma estrutura viária que facilitou este ramo de extensão urbana.
Esta ocupação é inorgânica, por ser descontínua e não seguir aquelas “linhas de força” que orientaram a sucessiva ocupação do solo. (p. 82 / ref. 22)…
O problema criado pelos loteamentos que ameaçaram levar o casario urbano para leste da BR-2, em solo mal drenado e de difícil compactação, constitui um problema exigindo uma opção; em nossa proposta prevemos condições de habitabilidade cômoda para os já residentes nesta zona (Salgado Filho, Vila Hauer, etc.); mas não estimulamos criar a ocupação orgânica, dos setores sul e sudoeste ao longo das estruturais já lançadas. Procuramos deste modo diminuir, ao máximo, o trânsito transversal à BR-2, já hoje seriamente afetando a segurança desta rodovia. (p. 147 / ref. 22)”.
No próximo Domingo (final):Reorganização do Espaço Metropolitano: Século XXI
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