No começo dos anos 1960, Alfred Hitchcock até tentou trazê-la de volta para o cinema. A burocracia palaciana vetou a ideia veementemente. Era fora de questão que sua alteza real, a princesa de Mônaco, pudesse estrelar um filme. O cinema era passado na vida de Grace Kelly. E ainda havia a questão do próprio filme, porque o papel que o mestre do suspense lhe propunha era o de Marnie, a ladra que compensava sua frigidez sexual – e de um trauma passado – roubando. Impossível. Grace nunca mais voltou ao cinema, mas interpretou, na vida, seu maior papel. Foi a tese de Olivier Dayan na cinebiografia que lhe dedicou. Grace, interpretada por Nicole Kidman, tem de interpretar o próprio papel como princesa sereníssima para evitar uma crise com a França, sob o general De Gaulle.
Grace Kelly! Ela nasceu em 12 de novembro de 1929 na Filadélfia – há 90 anos. Morreu em 14 de setembro de 1982, há 37 anos. Grace Patricia nasceu numa família rica e influente da Pensilvânia. O pai – esportista – recebera três medalhas de ouro na Olimpíada. Fez fortunas como construtor. A filha estudou nos melhores colégios e venceu o obstáculo familiar, quando resolveu tornar-se atriz. O irmão do pai era ator de vaudeville e chegou a fazer alguns filmes na Metro e na Paramount, onde ela reinaria. Interpretar não chegava a ser estranho naquele meio, mas não era o que John, seu pai, queria para a filha. Estudou arte dramática em Nova York e estreou na Broadway com uma peça de Strindberg, Father/Pai. Foi parar na TV, interpretando teleplays. O prestigiado diretor Henry Hathaway a notou e lhe ofereceu um papel em Horas Intermináveis, seu thriller de 1951. Uma coisa levando à outra, foi contratada para ser a esposa mórmon do xerife Will Kane/Gary Cooper num western que se tornou clássico, Matar ou Morrer, de Fred Zinnemann, de 1952. Na época, a personagem provocou controvérsia – pacifista, pega em armas em defesa do marido, e mata.
Conta a lenda que Alfred Hitchcock assistiu a Matar ou Morrer e, mesmo considerando a atuação de Grace “mousy” (tímida), percebeu que havia nela alguma coisa. Contratou-a, a tomou sob sua proteção e a primeira coisa que fez foi remodelá-la.
Como? Nos anos 1940, Hitchcock já elegera a sueca Ingrid Bergman, que fazia carreira em Hollywood. Em Grace, ele descobriu a mesma qualidade que vislumbrara em Bergman – ambas eram loiras frias, mulheres que, sob uma aparência glacial, podiam encarnar torrentes de emoção e sensualidade. Ao longo de dois anos e três filmes, entre 1954 e 55, o que o mestre fez foi oferecer a Grace papéis cada vez melhores – Disque M para Matar, Janela Indiscreta e Ladrão de Casaca. A essa altura, já filmara Mogambo na África, com direção de John Ford. Ainda em 1954, após o dois primeiros filmes com Hitchcock, estrelou Amar É Sofrer, como a filha de um alcoólatra. Ganhou o Oscar, mas até hoje tem gente que reclama de sua interpretação um tanto apática. E chegou Ladrão de Casaca, em que Hitchcock resolveu filmar a história do ladrão aposentado que volta à ativa para descobrir quem está usando seus antigos métodos para roubar em locações na Côte dAzur.
Ganha ajuda de uma socialite, Grace. Ambos se envolvem, e na cena-chave trocam um longuíssimo beijo, enquanto espocam no céu fogos de artifício. Mesmo em 1955, com toda censura, todo mundo entendeu que se tratava de um orgasmo. Durante a filmagem, ao visitar o Festival de Cannes, Grace conheceu o príncipe Rainier III. Casaram-se, no que na época foi considerado o conto de fadas perfeito. A princesa de Hollywood virou princesa de verdade. A partir daí, acabou o cinema. Dedicou-se à família, aos três filhos e ao trabalho humanitário com crianças carentes e jovens aspirantes a carreira artística. Em sua curta carreira, havia sido nomeada para (e até vencido) alguns dos mais importantes prêmios da indústria cinematográfica mundial. Duas nomeações para o Oscar; três para o Globo de Ouro; duas para o Bafta Awards; uma para o NBR Award; uma para o YFCC Award e ainda uma para o Bambi Awards. Virou ícone de elegância. Além de Hitchcock, outro diretor, Herbert Ross, tentou cooptá-la para fazer Momento de Decisão, que Anne Bancroft e Shirley MacLaine terminaram interpretando em 1997. Morreu num acidente de carro, aos 52 anos.
Essa vida tão perfeita, e a morte precoce, sempre alimentaram a fantasia do público. Surgiram especulações de que Hitchcock não tirara do nada sua ideia de uma Grace capaz de se transformar em vulcão erótico. Ela teria feito furor nos bastidores de Hollywood. Contam-se histórias de romances tórridos com colegas de elenco. Teria sido uma devoradora. Não importa. O que permanece é o mito. Grace Kelly é considerada uma das grandes lendas do cinema de Hollywood – na verdade, segundo votação do American Film Institute, a 13.ª. O notório Andy Warhol dedicou-lhe um retrato em serigrafia, edição limitada, e outro luminar da pop art, James Gill, também fez seu retrato – Grace Kelly in Sun. Mas o que a imortaliza é o cinema, e são os filmes de Hitchcock. A tesoura de Disque M, os fogos de artifício de Ladrão de Casaca e, acima de tudo, a cena em que James Stewart, imobilizado, a envia para enfrentar o assassino de Janela Indiscreta. Grace faz parte das emoções de todo cinéfilo que se preze. Só para constar, o Telecine Cult apresenta nesta terça Matar ou Morrer, às 20h25, e Ladrão de Casaca, às 22h.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.