“Globo” faz revisão do passado em “JK”

Para começar, rebobinemos a fita (e o mofo da expressão, dada a era digital, vem bem a calhar): presidente da República desde o suicídio de Getúlio Vargas, Café Filho adoece em novembro de 1955 e, na sua ausência, o então presidente da Câmara, Carlos Luz, que em tese deve tomar conta da lojinha, digamos, e assumir a Presidência da República, é acusado de aproveitar-se do fato para consumar um golpe de Estado, apoiado por Carlos Lacerda. O objetivo seria impedir Juscelino Kubitschek, eleito então pelo voto popular nas eleições de 3 de outubro passado, e João Goulart (Jango), eleito vice no mesmo pleito, de assumir o poder. O próprio Café Filho é impedido de reassumir seu posto após obter alta da junta médica, ainda em dezembro de 55. E seu ministro do Exército, o general Henrique Teixeira Lott, legalista que é, garante, com as tropas do Exército, a posse de JK, em janeiro de 1956, vencendo as articulações de udenistas e militares. Posto isso, vamos ao noticiário da época:

1) "Aconteceu, então, exatamente o que os partidários do ilustre Sr. Kubitschek vinham denunciando como preparativo de seus adversários – o golpe, o tão falado golpe. Sublevadas, as tropas do Exército desta guarnição ocuparam todos os postos-chaves, as comunicações, inclusive os edifícios públicos. O presidente Luz mal teve tempo de refugiar-se em um dos navios da esquadra, donde comunicou ao presidente da Câmara os acontecimentos e seu ânimo de manter-se à frente do governo. Não praticou nenhum crime, não abandonou o território nacional, não violou nenhuma lei. E, se o tivesse feito, a repressão não se poderia dar pelas armas, mas pelos meios regulares." (15/11/1955)

2) "Não foi agradável, para os inúmeros admiradores do deputado Carlos Lacerda, vê-lo cercado de polícias-especiais armados, por ocasião de sua partida para os Estados Unidos. Quem demonstrou tanta coragem pessoal, quem deu tantas provas de bravura e de desprendimento, certamente só muito a contragosto se veria alvo de tão acintosas garantias de vida, daquela mobilização armada (…) Para manter-se nos Estados Unidos (…) o nosso colega, que é um dos mais brilhantes espíritos do nosso tempo, terá de ampliar suas atividades jornalísticas. Desse modo, além dos compromissos com o seu jornal, ‘Tribuna da Imprensa’, Lacerda enviará correspondências para ‘O Globo’ sobre política internacional e sobre a vida norte-americana (…)" (19/11/1955)

3) "(…) A verdade, porém, é que a renúncia de Jango é, neste momento, uma espécie de bandeira de pacificação, e que o PSD está alheio ao assunto". (25/11/1955)

4) "(…) Nada temos a modificar das nossas mais recentes manifestações. Continuamos contrários às soluções de força encontradas pela maioria ocasional do Congresso. Permanecemos fiéis à nossa prédica em defesa das instituições, pela preservação da legitimidade do governo representado pelo presidente Café Filho. Se tivéssemos de voltar a escrever sobre os acontecimentos tão dramáticos destes dias, fa-lo-íamos sem trocar uma única vírgula. (…)" (idem)

Pois essas vírgulas voltam à tona – na tela da "Globo", que na época sequer existia, e, bem dito, no campo da ficção, que guarda lá certa distância do jornalismo do grupo que editou, há 50 anos, os trechos acima citados, extraídos do jornal O Globo. Mas quem lê essas linhas, que expressavam a postura da maioria da imprensa na época, diria que o herói da história que a "Globo" conta em sua nova minissérie seria Luz ou Lacerda, e não seu então adversário.

Na inversão de papéis, é a imagem de JK que sai bem na fita. E a das Organizações Globo, claro, que reposicionam as vírgulas de acordo com o time que já se sabe vencedor.

As chamadas que anunciam a estréia nesta terça, dia 3, logo após "Belíssima", dizem a que vem o JK de Wagner Moura – papel a ser vestido por José Wilker na segunda etapa. Que ninguém duvide: é o herói da história. "E o que você queria?", admite Maria Adelaide Amaral ao Estado.

Adelaide é assim, de uma franqueza rara entre o time que circula no meio televisivo. Desde que começou a fazer script da vida de JK, sonha com seu personagem dia sim dia não. Escreve a série com Alcides Nogueira, mas foi ela quem levou à direção da "Globo" a idéia de retratar JK. E diz que sua minissérie não será "chapa-branca" – apesar da bênção obtida da família Kubitschek. Nem pensa em omitir as falhas de seu mocinho, o que certamente o tornará mais atraente aos olhos do público – herói sem fraquezas costuma ser de uma chatice insuportável.

"Ué, nas eleições de 60 para Minas, ele apoiou oficialmente o Tancredo (Neves), legalista, mas, oficiosamente, torcia pelo Magalhães Pinto, da UDN. Isso foi um ato trágico", lembra Adelaide. "Do mesmo jeito, cometeu um ato trágico ao votar a favor do Castelo (Branco) e apoiar o golpe de 64. Dois meses depois ele (JK) estaria sendo cassado", completa. "Isso tudo estará em cena."

Mestre em equacionar conhecimento e entretenimento para a massa, a ponto de não dispersar a audiência, Adelaide não deita nessa fama, não. "O maior desafio é transformar momentos históricos da maior importância num produto altamente irresistível", fala.

No caso de JK, a grande dificuldade foi contextualizar a indicação do nome dele para a Presidência da República, o boicote sofrido e o golpe de 55 (assunto estampado nos trechos do jornal O Globo que mencionamos no início deste texto). "Se eu não contar essa história claramente, ninguém vai entender o resto."

Contexto Político

Entre uma vírgula do passado, outra do presente e mais uma da ficção, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva encontrou espaço, durante a preparação da minissérie no Projac e das CPIs em Brasília, para se comparar a JK no quesito "vítima de denúncias nunca comprovadas". Na época, Adelaide reagiu com indignação. Agora, nem tanto: "Não me espanta, todo mundo quer ser JK." Diretor responsável pela série, Dennis Carvalho acha graça na polêmica e contemporiza: "O Lula está fazendo merchandising pra gente, achei ótimo."

Para todos os fins, diretor e autores dizem que nem o contexto político interferiu na criação da série nem a série pensa em tirar algum proveito da vida real. Ainda que este enredo transpire política, romancear o roteiro faz parte do show. O princípio dos autores é o seguinte: isso não é documentário, mas nem por isso há de se distorcer fatos históricos.

O mesmo não se pode dizer da vida pessoal do ex-presidente. Sob o nome de Marisa, a personagem de Letícia Sabatella "sintetizará" todas as amantes de JK. A titular, dona Sarah, será representada por Débora Falabella na primeira fase e por Marília Pêra na segunda, a partir do capítulo 16.

Imagens reais em preto-e-branco, mais fotos da época vão costurar a produção, mas não predominam, avisa Dennis Carvalho.

Entre os personagens reais que desfilarão na série, vale um holofote sobre Adolpho Bloch, interpretado por Sérgio Viotti. "Seu Adolpho", como era chamado pelos funcionários de seu grupo, falido após sua morte, será bem representado na tela da ex-concorrente. É justo. Foi ele o criador da sigla JK. Não houve veículo que tenha estampado mais fotos e linhas de Juscelino do que a extinta revista Manchete.

O general Lott virá na pele de Cecil Thiré. Oscar Niemeyer, cujos traços da Pampulha e de Brasília servem de base para a abertura da série, será vivido por Rodrigo Penna. José de Abreu será Carlos Lacerda. Ranieri Gonzalez (primeira fase) e Osmar Prado farão José Maria Alckmin. Getúlio Vargas, Lúcio Costa e Tancredo Neves, ainda sem atores escalados, também estarão em cena.

Outra personagem real que tem sua história ligada à de JK é a da rainha da noite, Lilian Gonçalves, cuja mãe trabalhou como cozinheira do ex-presidente em Brasília. Filha do cantor Nelson Gonçalves, a loira será interpretada pela angelical Mariana Ximenez.

E o elenco é gente que não acaba mais. São mais de 100 atores para contar 74 anos de história. Fábio Assunção faz uma "participação afetiva" como pai do ex-presidente. Júlia Lemmertz e Ariclê Perez fazem a mãe. Paulo José é o avô materno. Também estão lá Cássio e Tato Gabus, Marília Gabriela, Camila Morgado, Nathalia Timberg, Antonio Calloni, Betty Goffman, Caco Ciocler, Cássia Kiss, Clarisse Abujamra, Débora Bloch, Denise Del Vecchio , Emílio de Mello, Eva Wilma, Guilhermina Guinle, , Louise Cardoso, Marcos Caruso, Mila Moreira, , Otávio Augusto, Regina Braga, Samara Fellipo, Xuxa Lopes e, de novo como o trio Tarsila do Amaral, Oswald e Mário de Andrade, Eliane Giardini, José Rubens Chachá e Pascoal da Conceição.

Dan Stulbach, Débora Evelyn e Luís Melo compõem um núcleo de ficção que bate forte no coronelismo combatido por JK em início da carreira. E já sabe, né? Quanto mais malvado é o vilão, (função de Luís Melo) maior o valor do mocinho.

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo