O segundo melhor filme brasileiro sobre a relação entre política, político e intelectual no Brasil acredito que seja Terra em Transe, de Glauber Rocha.
A ansiedade de qualquer brasileiro com um mínimo pudor e afeto pelo país, o desejo de romper relações arcaicas, de estabelecer o moderno até com ânsia desesperada – seja através de revolução ou não – está ali.
Depois de ver Maranhão, há alguns anos, achei que este é o melhor filme político brasileiro de todos os tempos. Os dois formam um mural de nossa miséria política, da tragédia imensurável que é a ganância, demagogia e incompetência de nossos homens públicos, a maioria detestável.
Maranhão é um documentário sobre a posse de José Sarney no governo de seu estado, em 1966. No jargão jornalístico e publicitário, era para ser uma picaretagem para render a Glauber trocos da sobrevivência, enquanto preparava outros filmes.
No documentário, Glauber percorre o Maranhão, cantos de São Luiz e mostra a miséria do campo e da cidade, hospitais e prisões e mostra um povo sofrido, uma gente sem perspectiva, vítima da exploração das oligarquias.
O que era para ser propaganda contratada pelo jovem governador eleito no final de 1965 vai com o tempo se transformando em um terrível libelo. Glauber, my brother, qual é a tua?
O documentário termina e o espectador pode então fazer o seu próprio filme acompanhando o resto da história, desta vez com Sarney de personagem central cumprindo o seu papel conivente com a ditadura militar, governador, senador e presidente da República, de novo senador, desta vez pelo longínquo Amapá, presidente do Senado atolado até o pescoço em incontáveis denúncias de favorecimentos a amigos e familiares e escultor de uma teia de inescrupulosa intimidade com o dinheiro alheio, especialmente o dinheiro público.
Quarenta e poucos anos depois do registro devastador de um Maranhão miserável, aquele estado continua tão perto dos oligarcas e tão longe de Deus. O povo continua pobre e o clã Sarney podre e rico e atolado em denúncias de corrupção.
Não há nada mais devastador. Sarney que não é bobo rejeitou o trabalho. Maranhão, ao contrário de qualquer ficção, não recorre a personagens imaginários em territórios imaginários, numa situação hipotética. Estamos diante de um personagem histórico real, de um território real, de um povo real, vivendo uma situação quase surrealista.
Como é realidade, estamos diante de uma tragédia porque o resto do filme, o que acontece depois que o governador toma posse, todo mundo com um mínimo de informação sabe. Não acontece nada.
O que faz de Maranhão uma obra prima é que o documentário é um registro cru de uma situação que ocorre historicamente em dezenas de outros estados, configurando uma normalidade – embora sob padrões éticos anormal.
A evolução patrimonial de ACM (Bahia), Jader Barbalho (Pará), Newton Cardoso (Minas Gerais), Gilberto Mestrinho (Amazonas), Orestes Quércia (São Paulo), Paulo Maluf (São Paulo), e outros, sempre foi no mínimo sujeita a profundas controvérsias. E é um modelo que se reproduz em centenas de municípios.
Portanto, o retrato de Sarney, não se resume a ele. Mas a um tipo de se fazer política usufruindo benefícios para grupos familiares e de amigos, visando o enriquecimento com dinheiro público em detrimento do bem estar da sociedade.
Se o espectador migra de Maranhão para Terra em Transe vai perceber que continua no mesmo território. O espectador estabelece de imediato uma relação entre documentário e o filme Terra em Transe, entre uma situação e outra, ainda porque Glauber usou cenas do primeiro no segundo, criando quase uma simbiose entre um e outro. Maranhão foi real e sem que seu financiador (José Sarney) quisesse e seu realizador (Glauber Rocha) projetasse, foi profético.
Terra em Transe é um filme fechado numa época, num contexto. Maranhão é atual. Para atualizar a tr,agédia que ele apresenta basta localizar Sarney, onde está hoje em dia e o que anda fazendo. Bingo. Uma aula de história.
O FILÓSOFO ENDOIDOU
Uma situação como a do Brasil é de deixar qualquer um louco. Glauber Rocha era pisciano, presbiteriano e baiano – do sudoeste. Nasceu em Vitória da Conquista, estudou em Caetité, numa região que levou para outros dois de seus filmes: Deus e o Diabo na Terra do Sol e o Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro.
Glauber tinha um jeito estranho de dizer as coisas, meio barroco, compulsivo e, às vezes, violento, uma violência verbal. Este jeito ficou ainda mais estranho quando voltou do exílio com idéias como a de uma nova eztetyka e reinventar a gramatika portugeza, para romper os laços de submissão do Brasil com o imperialismo.
Ele criou uma ortografia própria substituindo c, i e s por k, y, z e x. Glauber pode ser dividido em dois. Antes e depois do exílio. Antes produziu seus melhores filmes e foi considerado gênio por grandes mestres do cinema.
No exílio fez filmes sem grande projeção, namorou mulheres bonitas como Juliet Berto – musa dos filmes de Godard – e pensou. Até se tornar um “escritor filósofo” em sua própria definição.
Ele confessou: “Tenho ao todo treze livros pra publicar, entre os de cinema, um romance, um romanceiro do sertão, um folhetim fantástico e o diário do exílio, além dos poemas e do Mapa da Bahia”. No meio de tudo isso, afirmou: “Vou filmar um Globo Repórter chamado Introdução a Villa-Lobos”.
Além disso, “montarei as óperas O Guarani e Yerma de Villa-Lobos-Lorca e ficarei morando na Bahia”. Quando voltou ao Brasil publicou um romance doido chamado Riverão Sussuarana, em que faz uma paródia demolidora de Grande Sertão Veredas.
Glauber definitivamente tinha perdido o foco de seus projetos antes mesmo de pisar no Brasil. “Se voltar à Bahia, quero ser governador”, confessou. No Brasil, já admitia: “Tenho ambições políticas, quero ser ministro das Relações Exteriores ou da Educação e Cultura e governador da Bahia e suceder o próximo presidente, mas com eleições diretas”.
Mas ao pisar no Brasil, a primeira coisa que ele fez foi um documentário chamado Di Glauber, no velório do pintor, que até hoje permanece inédito porque a família ficou chocada com o bafafá que o cineasta armou no velório.
Quem viu o filme acha que é uma obra-prima. Difícil contestar. Em seguida Glauber se empenhou num programa de televisão no qual ele se apresentava como um Chacrinha caótico e apocalíptico.
E fez um longo filme chamado A Idade da Terra, deixando para o espectador a tarefa de fazer a montagem do dito cujo, do jeito que achasse melhor. Ele estava em Sintra, uma região portuguesa cheia de castelos e preparava um novo filme quando ficou doente.
Morreu no Rio de Janeiro. E para quem não conhecia o Glauber da primeira fase, ficou aquela sensação de “Glauber, qual é a tua?”. A dele era não suportar um Brasil comandado por medíocres. Paulo Francis tinha uma versão para a morte do cineasta: “Glauber morreu de Brasil”. Tem razão. Estes caras que fingem fazer política no Brasil são de matar qualquer um.