Glauber e o diabo na terra desolada

No filme Terra em Transe, um dos melhores do Cinema Novo, em uma cena memorável, o personagem Paulo Matias tampa a boca de um sujeito do povo para evitar que ele fale. Vai falar bobagem e Matias tem uma idéia de revolução na cabeça de burguês de esquerda. Esta é uma imagem forte do filme de Glauber Rocha. E uma imagem emblemática do pensamento glauberiano, porque mais que cineasta, era um pensador do Brasil, às vezes alucinado, às vezes lúcido demais.

Cinema para Glauber não era diversão, era ação política, para difundir mensagem e colocar em prática uma estética revolucionária.

A camera para Glauber era uma arma. Este filme, segundo Glauber, é sobre a “podridão mental, cultural, decadência que está presente tanto na direita quanto na esquerda” da América Latina. Uma típica declaração glauberiana, para arrumar inimigos possíveis, em todos os cantos. Mas ele estava errado? Não.

Glauber está na cabeça de Gilberto Felisberto Vasconcelos em seu livro Brazil no Prego (Editora Revan, 212 págs. Rio, 28,00). Resumindo, Vasconcelos, que já tinha escrito A Salvação da Lavoura, entre outros, crítica os sociólogos oportunistas que tomaram conta do Brasil com as suas sociologias de ocasião e coloca em questão o fato de o Brasil não ter um projeto nacional, sério e consistente de combate ao imperialismo. Na realidade, entrega-se a ele. O livro é uma coleção de artigos que se encadeiam na forma de crítica ao deslumbre globalizante e entreguista de Fernando Henrique Cardoso, retomado sem pudor pelo PT e o governo Lula. O livro é muito mais interessante que isto, claro.

Mas pode-se dizer que retoma a velha questão: entregar ou desenvolver o país. E como não poderia deixar de ser, evoca personagens emblemáticos de nossa história Getúlio, Jango e Brizola. Coloca em questão a necessidade de um pensamento brasileiro e não brazileiro, que as oligarquias ao longo de alguns séculos se serviram para dilapidar a saúde, as finanças, o destino e a grandeza da nação.

O mais baixo nível do mundo

Glauber está presente no livro diretamente ou através de seu pensamento. Por isso, é esclarecedor conhecer Glauber para melhor entender o livro e o Brasil. Glauber achava o cinema importante para discutir o país, o papel das oligarquias, o atraso e a crueldade dos patriarcas centenários. Porque? Porque o povo brasileiro precisa ter cultura política sem a qual não há mudança. “O Brasil tem o mais baixo nível político do mundo”, dizia. O problema é que os filmes de Glauber podem ser obras primas de cinema, mas não funcionaram como arma política. Pelo menos no populacho.

E aí a coisa empacou. Sem cultura política, o resultado é um povo manipulado por uma classe dirigente medíocre. Como a que temos aí. Glauber sofria com o fato de um país com dimensões continentais como o Brasil não assumir seu destino hegemônico. E livrar o país da multidão de pelintras entronizada através do voto ou não, em buracos do poder nas cidades, estados ou Brasília, não é fácil. Foi assim que Glauber acabou parecido com seus personagens messiânicos, um Antônio Conselheiro moderno.

Em busca de revolução no Brasil, ele fazia qualquer coisa: esta foi a razão que o levou a migrar de uma proposta revolucionária contida em filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol, para uma compreensão mais generosa do papel dos militares em nossa história. O tipo de revolução para o País era o que menos importava, o que importava era a revolução que fizesse do país uma grande nação, que fizesse a faxina histórica necessária.

Glauber era revolucionário, mas não marxista-leninista, por mais que se deslumbrasse em certo período com o êxito da revolução cubana. Eu presumo que o fascínio da revolução cubana em Glauber Rocha foi pela capacidade e possibilidade demonstrada de se desvencilhar do domínio sufocante dos Estados Unidos, de seu imperialismo voraz e estéril. Admitindo esta hipótese, fica fácil compreender porque em certa época refez conceitos. Revolução é o Brasil romper sua estrutura arcaica e se apresentar ao mundo como uma nova e altiva civilização.

Nacionalismo

O que está em questão, portanto, é a necessidade de um projeto nacional e o estrago que sua ausência provocado em nossa sociedade. O que se pede é um nacionalismo sem timidez. Os imperialistas disseminaram no mundo o conceito que virou dogma através de uma frase de Samuel Johnson: “o nacionalismo é o último refúgio dos velhacos”. O problema é que, em parte, a frase está correta. Basta ver a história da América Latina e quantos velhacos justificaram o uso da expressão ao manter velhas estruturas ou criar sobre elas um regime ainda mais odioso.

O problema é que, só em parte. O imperialismo e seus sucedâneos, ainda que marxistas, não fizeram por justificar as teóricas benesses do internacionalismo. Ao contrário, este foi usado em projetos nacionalistas, como o caso da União Soviética. E basta citar os Estados Unidos e sua xenofobia para que a idéia de globalização e outras panacéias sejam colocadas em quarentena.

O problema do nacionalismo é como engendrar um projeto criativo, fecundo e que libere toda esta reserva de energia de nosso povo, desperdiçada sob incompetência notória e a rede de compadrismo secular. Alguns brasileiros esboçaram ou formularam uma idéia de Brasil como país não subjacente. Oswald de Andrade, Glauber Rocha e Darcy Ribeiro, gênios da raça, chegaram a esta condição justamente pelo esforço nesta direção. O grande mérito de Gilberto Vasconcelos é o de ser arauto de uma brasilidade adormecida. E ele usa as armas mais letais que podem ser usadas: demole a gandaia que é nossa elite dirigente com bons golpes de esquerda e de direita, como o saudoso Glauber.

Mas, ainda assim, resta o problema central: como este povo vai tomar conta de seu destino? É uma boa pergunta. Sem boas respostas, por ora. Enquanto não aparece uma boa resposta, a solução é combater as saúvas que acabam com o país, para que sobre alguma coisa onde se possa construir uma verdadeira nação. É preciso coragem e um pouco de lucidez. Coisa meio rara por aí. Mas o doutor Gilberto Vasconcelos tem e dá a sua contribuição.

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