‘Garagem’ peca por personagens caricatos

A situação dramática que move Garagem, em cartaz no Galpão do Folias, já está exposta desde os minutos iniciais da peça. Em crise, um advogado de classe média precisa lidar com perdas radicais: seus bens foram tomados, seu casamento terminou. Tudo o que lhe restou foi uma vaga de garagem – espaço que ele decide habitar e passa a chamar de lar.

Na dramaturgia de Gustavo Paso, que também assina a direção, existe um senso de transgressão nas escolhas do protagonista. Interpretado por Gustavo Falcão, Juan encarna o homem que se recusa a ser conivente com o “sistema”.

O motivo de sua ruína não chega a ser completamente esclarecido, mas é possível compreender que poderia ter sido salvo se consentisse com as manobras escusas do sogro. Fica a sensação de que a penúria do personagem é o preço alto a pagar por sua honestidade.

No Rio, onde estreou, o espetáculo era encenado dentro do estacionamento de um shopping center. Aqui, a montagem foi levada para um espaço teatral. A cenografia de Teca Fichinski e Gustavo Paso, porém, manteve seu sentido e funciona mais como motor da trama do que como mera ambientação.

Muitos dos personagens entram em cena dentro dos quatro carros usados na montagem. Outra parcela serve-se de um elevador. Nesse contexto, fica evidente o sentido que se ambiciona dar ao espaço da garagem, espécie de anteparo entre a rua, o espaço público, e a casa, lugar do privado.

Para que Juan exponha seu mal-estar – e seu senso de inconformismo – o autor movimenta uma série de figuras e situações. O núcleo formado por Rosa, a ex-mulher (Luciana Fávero), Ávila, o sogro (Clóvis Gonçalves) e o vizinho Lacerda (Marcos Breda) traz à tona o sentido corrosivo das concessões cotidianas. O que cedemos para evitar os conflitos pode também nos diminuir (e violentar) aos poucos.

Mecanismos eficientes para esclarecer o sentido do enredo, contudo, não rendem necessariamente bons personagens. Ao sublinhar o sentido “utilitário” das figuras que passeiam pelo palco, o autor lhes nega qualquer complexidade.

Alicia Ruiz (Elea Mecurio) é a mulher bonita e popular que vê no sexo um sentido meramente utilitário. Doente e viciada em remédios, Lara (Lumi Kin) precisa de ajuda, mas não consegue ultrapassar seu orgulho ou o temor de se mostrar frágil e dependente do outro. Sem pruridos morais, Mila (Camila Carandino) é uma repórter capaz de distorcer a verdade para conseguir uma boa história.

Nesse jogo, expõe-se um rosário de infortúnios amorosos. Outro tanto de dramas da contemporaneidade – o pai travesti e sua identidade transgênero, a filha portadora de deficiência que ambiciona ter uma típica vida de adolescente a despeito de suas limitações motoras.

No universo da classe média, consumo é palavra de ordem. Viceja a falta de diálogo tanto entre casais quanto entre pais e filhos. O anti-herói que insiste em viver no cinzento subsolo representa uma ameaça à edulcorada realidade dos endinheirados. Como uma mancha que pode vir a contaminar tudo.

Segundo a lógica maniqueísta que rege o roteiro, apenas aqueles que estão à margem podem escapar de tais armadilhas. O porteiro Santiago (Alvaro Gomes) é capaz de esperar 20 anos pelo amor de uma mulher. Tia de Juan, Yolanda (Cecília Lage) vem representar uma caricata e ingênua hippie fora de época.

Sem problematização, os conflitos do protagonista acabam encerrados em si mesmo; apenas desfilam, sem desenvolvimento ou reverberação.

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