A viagem foi mais que um tema na carreira do pintor paraibano Antonio Dias, um dos expoentes da geração formada nos anos 1960, hoje um nome globalmente conhecido. Foi graças ao constante deslocamento de Dias de um país para outro que o artista descobriu materiais novos, como os papéis do Nepal, em 1977. Foi também em virtude de ser um pintor cosmopolita que o poeta concreto Haroldo de Campos (1929-2003) intuiu ser Dias o intérprete visual perfeito para seu livro “Galáxias”. Agora, passados 30 anos da publicação da obra, o pintor finalmente concluiu sua missão: está pronto o múltiplo que reinterpreta a viagem poética de Campos, que ele chamou, na época, “audiovideotexto” ou “videotextogame”, antecipando o hipertexto e a contaminação midiática cyber.
O múltiplo “Galáxias”, com textos de Haroldo de Campos e peças criadas por Antonio Dias, será lançado dia 16, às 17 horas, na Casa das Rosas. Antes, no dia 13, Dias abre uma exposição na filial carioca da Galeria Nara Roesler, em que mostra as obras feitas com papéis artesanais do Nepal, entre 1977 e 1986, série que marca uma ruptura na trajetória do artista, inicialmente vinculada à linguagem pop. Realizados em conjunto com artesãos nepaleses, os papéis deixam de ser simples suportes com a intervenção desses assistentes, incorporando o processo de produção como componente das peças.
Também esse período é evocado no múltiplo “Galáxias”, uma caixa de 50cm x 70 cm, pesando nove quilos, que contém dez caixas menores. Quando abertas, elas revelam objetos que se completam, abrigando 32 peças no total. O múltiplo, como o longo poema em prosa de Haroldo – ou a “Odisseia” de Homero – é uma jornada épica através das galáxias que, a exemplo da aventura de Ulisses, mais parece uma viagem interior em busca do autoconhecimento, como a do astronauta de “2001, Uma Odisseia no Espaço”.
Dias conta que esse projeto nasceu bem antes da publicação do livro “Galáxias” por Haroldo. “Em 1972, ele publicara alguns esparsos que me mostrou e, desde aquela época, planejávamos fazer uma interpretação visual desse textos.” O conceito básico era um livro-caixa que, aberto, formaria uma exposição galáctica. No livro experimental do poeta, escrito entre 1963 e 1976, mas só publicado em 1984, essa “viagem” não tem vírgula nem ponto final. Aliás, não tem pontuação. É um texto de fluxo aloprado, como o monólogo interior de Molly Bloom no romance “Ulysses”, do irlandês James Joyce. Outra referência de Campos é o brasileiro Guimarães Rosa, que, em “Grande Sertão: Veredas”, empreende uma viagem em que geografia, anatomia e linguagem se cruzam numa narrativa repleta de neologismos.
Esse conglomerado de palavras, que Haroldo de Campos ergue como um monumento de matriz barroca, se traduz na obra de Antonio Dias em citações autobiográficas que remetem a obras marcantes na trajetória do artista, como as curvas que sugerem tanto nuvens como a região glútea na sua obra “Poeta/Pornógrafo” (1973) ou o jogo de revelar e esconder do “Projeto para o Corpo” (1970), aqui revisitado como camadas de papel celofane sobre um objeto em que está impresso o texto de Campos. Na mais autobiográfica dessas caixas, uma pequena instalação com placas de estações ferroviárias e bilhetes de trens, esses sinais gráficos remetem a uma época em que Dias viajava constantemente de Milão para outras cidades.
Numa outra caixa, de inspiração lewiscarrolliana, a viagem de Alice chega a um livro espelhado em que as palavras ‘Glass words’ da página esquerda aparecem refletidas na página da direita. E, numa caixa que traz impressa a marca registrada de Dias, um livro, desdobrado em dois, abre-se um para o outro, tendo na capa a bandeira vermelha (1976) da qual foi retirado um fragmento quadrado. O projeto, conta a editora Lúcia Bertazzo, da UQ/Aprazível Edições, demorou quatro anos para ser concluído manualmente – são 93 exemplares em tiragem numerada, nenhum deles igual ao outro. O preço é compatível com a edição de luxo (R$ 45 mil), já comprada por colecionadores como Gilberto Chateaubriand e incorporada a acervos como o do Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York.
Assim como Haroldo de Campos teve de ir além do concretismo para criar Galáxias, Antonio Dias foi levado a encarnar o narrador viajante imaginado pela poética aberta do escritor, rendendo-se à fusão híbrida da sintaxe barroca com a moderna. “Sou um pouco menos barroco que o Haroldo, mas, como ele, acredito que olhar e tocar sejam sinônimos”, conclui. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.