Com o foco centrado em Batman Begins, a superaventura de Christopher Nolan com Christian Bale que tomou de assalto, anteontem, centenas de salas do País, um filme pequeno como Nicotina corre o risco de se perder. Será uma pena se isso ocorrer, especialmente para os espectadores jovens que há alguns anos se divertiram com Corra, Lola, Corra de Tom Tykwer.
São Paulo – Os dois filmes e diretores possuem características diferenciadas, mas trabalham no mesmo registro do tempo real. Em Lola, uma garota recebia um telefonema do namorado, que lhe reportava a tragédia. Ele perdeu o dinheiro de um gângster e ela tem apenas 20 minutos para repor a quantia. Começa a corrida de Lola, convergindo para três finais diferentes. Agora, é uma sucessão de acasos e mortes unidos pela espiral de fumaça dos cigarros. Fumar faz mal à saúde, adverte o Ministério da Saúde, mas pode ser bom para o cinema.
Na entrevista que deu ao Grupo Estado, durante o Festival de Cannes, Jeanne Moreau descreveu as baforadas de Marlene Dietrich nos filmes de Joseph Von Sternberg como a suprema afirmação do erotismo no cinema. Wayne Wang e Paul Auster obtiveram bom resultado com Cortina de fumaça e Sem fôlego e Michael Mann obteve reconhecimento como grande diretor a partir de sua denúncia da indústria tabagista no poderoso O informante, no qual o alvo do ataque do cineasta é menos a indústria do fumo que a mídia e a Justiça por ela cooptadas. O diretor Hugo Rodriguez, de Nicotina, viu todos estes filmes e também Pulp Fiction, de Quentin Tarantino. Nicotina é obra de um fumante tarantinesco que vê no acaso uma ponte para a violência. São três tramas interligadas que correm num tempo muito preciso, das 21h17 às 22h50, num total de 83 minutos. No centro de todas elas está o cigarro, que o diretor Rodriguez e o roteirista Martin Salinas definem como metáfora de qualquer coisa, da fraqueza e carência ao desejo consciente de morte.
Tudo começa com a confusão provocada por Lolo. Interpretado por Diego Luna, um dos garotos de E sua mãe também, de Alfonso Cuarón, ele é um técnico em computadores que instalou um sistema para monitorar a vida da vizinha. Neste momento, Lolo foi contratado para uma atividade criminosa – deve entrar nas contas secretas de um banco. Um par de comparsas vem buscar o disquete no qual ele registrou os códigos de acesso para repassá-lo a dois mafiosos russos, que vão pagar em jóias, mais exatamente, diamantes. Mas o voyeurismo de Lolo é descoberto pela vizinha, que invade seu apartamento e arma uma cena. Nervoso, o rapaz troca o disquete e desencadeia uma série de perseguições e mortes que correm velozmente na tela, apoiadas em situações e diálogos repletos de humor negro.
A este núcleo inicial, o de Lolo, agregam-se outros dois – o do farmacêutico e sua mulher e o do casal que possui a barbearia na qual vai parar o russo fugitivo. Antes de morrer, ele tem tempo de dizer que escondeu as jóias na pança e é o que basta para a mulher do barbeiro, como uma ensandecida Lady Macbeth, abrir sua barriga e revirar nas tripas em busca do ouro. São cenas que poderiam ser chocantes, não fosse o humor com que o diretor as reveste. Sob a aparência de uma simples diversão, Rodriguez, em Nicotina, cria polêmica por duas ou três coisas que diz sobre a natureza do vício – e de como aqueles que não conseguem deixar de fumar ficam encurralados por seus desejos quase sempre irracionais.
Um dos melhores (e mais mórbidos) diálogos é aquele em que os parceiros de Lolo, no interior do carro, discutem por que um deles não consegue parar de fumar e o outro vê no fato uma pulsão de morte que ameaça envolvê-lo. A ironia – realmente tarantinesca – é que, embora os personagens falem do ato de fumar ou da fumaça que é aspirada até por quem não fuma como potencialmente mortais, ninguém tem tempo de morrer de câncer, tantos são os tiroteios, as facadas e as explosões.
Embora jovem, Tom Tykwer fez escola com Lola, Corra, Lola, no qual as três variações possíveis da corrida da protagonista convergem para uma espécie de Jardim dos Caminhos Que se Bifurcam, o que indica que, ele próprio, é cria (menos genial) de Jorge Luis Borges e também de Alain Resnais, que foi outro a explorar, em Smoking/No Smoking, as possibilidades de relatos que se abrem para desfechos diferentes. Rodriguez trabalha nesse registro. Nascido em Buenos Aires, ele vive na Cidade do México desde 1981. Virou cidadão mexicano e, como tal, foi integrado à cinematografia do país, na qual irrompeu com um elogiado primeiro longa em 1993, En Medio de la Nada. Transformado em diretor de produção de vários curtas e documentários, também foi assistente de direção de Cuarón en Solo con Tu Pareja e de Carlos Carrera em La Mujer de Benjamin.
Só agora ele apresenta seu segundo longa, indicado para 11 prêmios Ariel, o Oscar do cinema mexicano, tendo vencido seis, o que inclui melhor roteiro e montagem. A pergunta que não quer calar – Rodriguez fez seu filme como proibição ao ato de fumar? Talvez seja mais "é proibido proibir", já que o cigarro, no filme, não é tão mortal quanto parece. Prova disso é que o próprio diretor aparece de cigarro na boca em quase todas as suas fotos que circulam pela internet.