Fotografia, amor, dor e antropologia

O livro Amor e dor: ensaios em antropologia simbólica (Recife, Editora Bagaço, 2005) trata de um tema transversal que é o luto, o sentimento de perda de alguém pela morte. Um tema visto sob a ótica da antropologia, que perpassa não só as interfaces das demais Ciências Sociais, mas também os domínios da filosofia, da biologia, da psicologia e, sobretudo, da psicanálise. Nele, se busca compreender através do sentimento do luto e da dor da perda, o homem na modernidade ocidental em seus processos de constituição, bem como nas várias formas societárias e culturais existentes, tendo por especificidade o caso brasileiro, explica o autor, o antropólogo Mauro Guilherme Pinheiro Koury, coordenador do Grem – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia da Emoção da UFPB (Universidade Federal da Paraíba).

Aqui, apresento uma conversa com o autor sobre o seu mais recente livro, o Amor e dor: ensaios em antropologia simbólica, e as bases que norteiam a sua composição. Qual é o enfoque específico da antropologia ao dedicar-se a um tema transversal sobre a dor da perda, sobre o luto? Enquanto a análise psicológica e psicanalista se baseia no entendimento da psique do sujeito individual, "a antropologia trata do processo de constituição cultural e social dos afetos, tendo os indivíduos como construtores e agendadores deste processo, enquanto subjetividades em trocas sociais através de um arcabouço objetivo que constitui a base de ação dos sujeitos na interação, também por eles construídos, e que informam a base de uma tradição orientadora da ação", disse Koury, mas as leituras não ocorrem separadamente; há um diálogo profundo entre as diversas formas científicas e filosóficas de pensar os afetos.

Mauro Guilherme Pinheiro Koury.

O estudo da constituição dos afetos não é recente na antropologia. Marcel Mauss, no artigo A expressão obrigatória dos sentimentos, e Émile Durkheim, no livro As formas elementares da vida religiosa, já os discutiam no processo de constituição da civilidade enquanto bem simbólico. "Paixões e afetos perpassam a angústia de respostas do homem de se encontrar consigo, com a natureza, com o sobrenatural e estão prenhes de sentidos que configurariam na esfera da ciência, a teoria do conhecimento, enquanto instância simbólica e civilizatória", explica o antropólogo.

A constituição das paixões na sociedade ocidental, enquanto experiências e categorias vividas e analíticas, caminharam em sentido diferente das de outras formas civilizatórias. Ao contar a história das paixões, amplia-se a possibilidade de entendimento dos caminhos que levaram à configuração do homem ocidental de hoje. E como o livro conta essa história? Pelo uso do instrumento fotografia no processo de luto no contexto do Brasil urbano.

A capa do livro é uma gravura de Goya intitulada El amor y la muerte. A mulher segura nos braços o seu amante agonizante após um duelo (seguramente tendo a mulher como motivo do enfrentamento).

Como ocorre essa relação? Koury explica que "a fotografia foi e é um instrumento significativo da percepção burguesa de apropriação de tempos e espaços, e da natureza e dos afetos. A sua pretensa objetividade na captação de instantes, do que Barthes chamaria de um aqui e agora aprisionado no instantâneo fotográfico, permitiu a ilusão burguesa de apropriação e coleção. A fotografia familiar ou íntima faz parte desse processo. Os indivíduos procuram rememorar os seus passados e situações através da sentimentalidade que emana das fotos guardadas em álbuns, paredes, caixas, malas, móveis vários, etc, como coleção, onde se permite reter apenas o passado que se quer guardar, desprezando circunstâncias, acontecimentos e visões de si mesmo que se quer ignorar ou esquecer".

Através da relação entre trabalho de luto e fotografia, é possível permitir mudanças em andamento quanto à sociabilidade brasileira? Para o antropólogo, uma das mudanças mais significativas se dá em torno da impessoalidade e da solidão que parece emergir das novas formas de sociabilidade no Brasil urbano dos anos de 1970 em diante. E da ambigüidade com que esta nova impessoalidade parece agir nos sujeitos, enquanto indivíduos e enquanto pessoas em troca no social. Koury explica: "Em processos como o do luto, esse elemento parece apresentar-se com maior força. Embora eu já tivesse tratado sobre o tema no livro Sociologia da emoção: o Brasil urbano sob a ótica do luto (Petrópolis, Vozes, 2003), no livro Amor e dor retomo essa análise, tendo ao fundo a fotografia como instância mediadora e relacional em quatro casos escolhidos nas 243 entrevistas utilizadas no Sociologia da emoção".

Em uma sociedade em que as formas mais pessoalizadas do agir social fragmentaram-se, produzindo em seu lugar formas mais impessoais de ação, a fotografia íntima funciona como organizadora de novos códigos que ligam ou situam o indivíduo enquanto pessoa, enquanto laços sociais que lhe dão possibilidade de assumir o sentimento de pertença, de pertencer a algo ou alguém, de mostrar linhagens.

O livro aborda relações entre individualismo, indivíduo e mercantilismo. Qual a relação com a sensibilidade do brasileiro? Com base no texto de Simmel, A filosofia do dinheiro o professor descreve a emergência do indivíduo na modernidade constituída de dois movimentos: sua autonomia, ao se desfazer das amarras da tradição, que o permite voar para dentro e fora de si, e, por outro lado, a ascendência dos laços impessoais e de concorrência, que afastam os indivíduos uns dos outros, devido ao mercantilismo e à noção de práxis, do dinheiro enquanto novo deus ex machina, o que diminui o valor de sua liberdade, uma vez que tudo pode ser comprado e comparado, inclusive os homens. A esse novo movimento se dá o nome de individualismo, reino do indivíduo enquanto instância estatística ou corpórea, competitivo, que sacrifica a autonomia (ou a confunde) com o ganhar mais, como reter mais e mais apropriadamente.

Zélia Maria Bonamigo é jornalista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social pela UFPR, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná  

zeliabonamigo@uol.com.br

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