Esta é a primeira Flip de José Murilo de Carvalho, professor emérito da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Letras, e não por acaso: a homenagem a Euclides da Cunha toca em vários temas sensíveis à sua pesquisa, que envolve entre outros assuntos a formação da República e o papel das Forças Armadas na história do Brasil.

continua após a publicidade

São três livros que o professor lança em Paraty (RJ). Uma biografia da mulher chamada de Joana D’Arc brasileira pela seu ímpeto em participar da Guerra do Paraguai em 1865 (Jovita Alves Feitosa: Voluntária da Pátria, Voluntária da Morte, pela editora Chão). Uma reedição de Forças Armadas e Política no Brasil, pela Todavia, e 130 Anos: Em Busca da República (Intrínseca), do qual ele é um dos organizadores. Carvalho recebeu a reportagem em uma pousada de Paraty.

Como é que a formação militar do Euclides da Cunha influenciou sua visão sobre Canudos?

A formação militar era muito literária. O que eles liam eram as grandes ideias filosóficas, o positivismo e o evolucionismo. Isso incentivou muito a visão dele. Os formados saíam de lá literatos, e não soldados. Inclusive tinham títulos como “doutor general”, “doutor tenente”. O que marcou em primeiro lugar foi uma adesão forte à República, vinda do comtismo. Era um passo frente à Monarquia em termos de evolução da humanidade. Explica um pouco a reação inicial e a não percepção dele sobre o que se passava em Canudos. É difícil criticá-lo, porque o mundo intelectual era o mesmo, havia uma paranoia da reação monárquica. Mas ele ficou decepcionado com a República, já no início. Com Canudos, gera um processo, e tem a ver também com certos aspectos do temperamento dele. Euclides era um cara de integridade total e a formação militar tem um pouco disso, de ser leal, correto, ter comportamento cívico patriótico. O desapontamento com a República foi uma das coisas mais dramáticas para ele.

continua após a publicidade

A visão de Euclides sobre Canudos afetou a forma como as Forças Armadas passaram a se relacionar com a República?

Essa é uma pesquisa que eu sempre quis fazer e não fiz. Euclides não tinha vocação militar, ele estava lá por motivos financeiros. Na Escola Militar, tinha casa, comida e um dinheirinho. Ele já estava brigando com os militares, mas, depois de Canudos, foi um rompimento. Aí entram essas questões: o que aconteceu com os militares envolvidos em Canudos depois da denúncia daquilo como um crime? Há um silêncio. Se transformou em algo constrangedor.

continua após a publicidade

As Forças Armadas desenvolveram um projeto de poder ao longo do século 20?

Como o Exército não tinha estruturas e organizações sólidas, houve um poder desestabilizador, a partir de dentro, e, na década de 1930, ocorre uma mutação. Nesse momento, é preciso que o Exército acabe com a oposição interna para fazer política para fora e ser um ator político importante. Já em 1964, passaram a agir com regras diferentes de promoção e outras coisas para fazer daquilo um bloco que permaneceu unido até hoje. Foi uma construção. E aí sim tiveram que fazer alianças com grupos externos, e sempre havia gente disposta. O apoio foi grande.

O fato de que o atual presidente e boa parte de seus ministros serem militares da reserva significa que as Forças Armadas estão no governo?

Certamente não. Eles estão lá a títulos individuais, mas é inocente achar que as instituições militares não se preocupem com isso. Porque o fracasso pode se refletir ali. Agora, imagino que eles estejam numa situação muito desconfortável. O grande trunfo que as Forças Armadas têm hoje é mostrar as pesquisas de opinião. É uma carta difícil de contestar. E quais são os setores da sociedade que são mais hostis às Forças Armadas? Jornalistas, intelectuais e artistas. Um dos pontos que eu falo é que essa é uma situação muito ruim para o País, onde não há confiança entre Forças Armadas e as elites intelectuais. Há muito tempo venho fazendo um esforço para estabelecer pontes, ver se a gente consegue conversar, botar as cartas na mesa, mas não é fácil. É um desastre do ponto de vista do País.