Embora a Mostra Aurora seja a menina dos olhos de Tiradentes, a Transições decolou este ano com mais intensidade. Na segunda, 25, a programação da noite foi dominada por Urutau, de Bernardo Cancella Nabuco, na Transições. Na sequência, a Aurora promoveu o retorno de veterano Luiz Paulino dos Santos, que não realizava um filme há 20 anos. O curador Cléber Eduardo gosta de dizer que a Aurora, com seu formato radical de cinema de autoria e invenção, privilegia os iniciantes e os reiniciantes. Luiz Paulino, que foi ator de Nelson Pereira em Mandacaru Vermelho, roteirista (Barravento) e produtor (Deus e o Diabo na Terra do Sol), de Glauber Rocha, pertence ao segundo grupo.
Ele retoma a cultura dos índios no marco do tema dominante da 19.ª Mostra de Tiradentes, com a homenagem a Serras da Desordem – Espaços em Conflito. Mas antes de Índios Zoró – Antes, Agora e Depois?, é bom falar de Urutau. O título refere-se a um pássaro mítico cujo canto se assemelha a um soluço de dor. De novo, o espaço em conflito, mas agora é um cenário único, claustrofóbico – o porão em que um homem mais velho mantém em cativeiro um garoto. O filme abre-se com uma cena forte de sexo. O homem mais velho abusa do garoto. O filme reproduz a rotina do que deve ser a vida dos dois nos sete anos em que o menino, agora adolescente, está encerrado.
“Meu filme não se assemelha a nada do cinema brasileiro recente”, advertiu o diretor. “E ele tem seu tempo.” É um dos filmes mais terríveis do cinema mundial recente, não apenas brasileiro. Um dos filmes selecionados para o Oscar deste ano, O Quarto de Jack, é sobre um garoto que foi concebido e viveu até os 5 anos no local em que sua mãe é mantida pelo sequestrador que abusou dela. No filme de Hollywood, o garoto sai do isolamento. No brasileiro, há um twist (uma reviravolta), mas o isolamento… Espere por Urutau para ver. O filme é rigorosamente pensado e executado. Nada parece ser deixado ao azar. Tudo faz sentido e ele é muito bem filmado e interpretado. Um jogo de dominação – um poder patológico gera uma submissão patológica. Mas não é a maniqueísta saga de um monstro e sua vítima. O garoto subverte, por momentos, a estrutura de dominação. E o abusador é carente de afeto. “Diga que me ama”, reclama o tempo todo.
O caso de Luiz Paulino é outro. Além de diretor, é personagem de seu filme. Ele revisita um curta que fez no começo dos anos 1980 – Ikatena? Vamos Caçar – e parte ao reencontro dos índios do título. O filme começa de denúncia – contra o desmatamento da Amazônia e a destruição das populações e culturas indígenas -, mas a personalidade de Luiz Paulino faz com que trilhe outros caminhos. O diretor certamente quer mostrar os perigos da evangelização dos zorós, mas o próprio Luiz Paulino é um produto do sincretismo baiano. Fundou uma comunidade do Santo Daime, invoca o Hare Krishna. Falando diretamente para a câmera, exprime seu desejo de integração cosmológica. Você entra no espírito, ou não. A garotada que é o público dominante da mostra já parece ter erigido Luiz Paulino seu profeta do ano. O filme foi construído sem roteiro (informa, em cena, o autor) e é também desequilibrado, embora uma coisa não resulte, necessariamente, da outra. Ali dentro, há um filme bonito. No curta, índios jovens brincam no rio. No longa, Luiz Paulino volta ao rio. Os índios foram-se. Ele se lança nas águas – em busca do tempo perdido? Embora díspares, o tempo é o personagem de Índios Zoró e de Urutau.