Tem gente que não se conforma – o júri presidido por George Miller, no Festival de Cannes do ano passado, pode ter ousado ao premiar o discurso antiglobalização de Ken Loach em Eu, Daniel Blake, mas daí a não conceder nenhum prêmio a Paul Verhoeven (Elle) nem a Kléber Mendonça Filho (Aquarius)… A mesma espécie de indignação atinge a exclusão de Jim Jarmusch do chamado Palmarès (a lista de vencedores). Jarmusch foi, até o último momento, uma aposta dos críticos por seu extraordinário Paterson, que estreia nesta quinta, 20, nos cinemas brasileiros. Se não a Palma de Ouro, pelo menos o prêmio de interpretação para Adam Driver.
Nem uma nem outro. O Oscar também ignorou Driver, que não foi – sequer – indicado. Esqueça tanta injustiça – prêmios não são infalíveis, afinal de contas. Paterson entra para ser um dos melhores filmes do ano. Já tem lugar cativo entre os dez mais – procuram-se os outros nove. Pitanga, de Beto Brant e Camila Pitanga? Por aí… O cinema contou muitas histórias de poetas, nenhuma como a de Paterson. Teremos, nas próximas semanas, outro grande filme sobre poesia – Além das Palavras, de Terence Davies, com Cynthia Nixon (como Emily Dickinson), que bem poderá ser a melhor atriz de 2017, como Adam Driver já é o melhor ator do ano.
Em Cannes, na coletiva, Jarmusch contou como, ao escolher Driver para o papel, nem ele nem o ator sabiam que seria escalado para fazer o vilão da nova série Star Wars. Jarmusch chegou a dizer – “Nunca vi nenhum filme dessa série, nunca tive interesse, mas sei tudo sobre Star Wars e seus personagens. É impossível viver no mundo atual sem ser bombardeado por esse tipo de informação. Não estou me queixando, só constatando.” Por que ele escolheu Driver? “É um ator que reage ao papel, em vez de interpretá-lo. Adam nunca me perguntou como deveria andar, falar. Vi-o na TV em Girls e no cinema em Balada de Um Homem Comum e Francis Ha. Imediatamente percebi que era o ator que precisava. Robert Mitchum também era assim. Inclassificável, mas superior.” A seu lado, perante jornalistas de todo o mundo, Driver sorria. “Ele (Jarmusch) é o diretor mais cool com quem trabalhei.”
Já era assim desde Estranhos no Paraíso e Daunbailó, nos anos 1980. O novo filme talvez tenha começado a nascer no imaginário de Jarmusch quando ele foi a Paterson, em New Jersey, a convite de William Carlos Williams, um dublê de médico e poeta de quem se tornou amigo, além de admirador. “É meio esquisito dizer, mas admiro imensamente William, menos seu livro Paterson, que talvez nem tenha entendido. Mas gostei do conceito – um homem como metáfora de uma cidade, e vice-versa.” Na ficção de Paterson, Driver faz um motorista de ônibus que tem o mesmo nome da cidade. Apaixonado por sua mulher iraniana, a deslumbrante Golshifteh Farahani, Paterson utiliza todos os seus momentos vagos para escrever poemas de amor. A ela e à cidade. Uma poesia do cotidiano.
“Gosto muito dos poetas da chamada New York School (of Poets)”, disse o diretor, citando Frank OHara e John Ashbery. OHara produziu sua grande poesia, peculiarmente cheia de exclamações, nos intervalos de sua atividade como curador do Museu de Arte Moderna de NY. Veio daí, dessa espécie de dicotomia, a ideia de fazer de Paterson/Driver um dublê de motorista e poeta. “Quando William Carlos me apresentou a cidade, fiquei imediatamente fascinado porque Paterson é uma cidade industrial, com uma vida muito rica e diversificada. É uma cidade de trabalhadores (working class people). Se você vai ao centro (Downtown), percebe que tem a parte mexicana, a parte árabe e a chinesa. Não necessariamente se misturam, mas se respeitam.”
O casal – marido, mulher – e o cachorro. O de Paterson ganhou a Palme Dog, mas, infelizmente, morreu logo após a produção. O cachorro é um personagem como a cidade. “Tenho de confessar que a minha Paterson é imaginada. Quando a conheci, me pareceu o protótipo da cidade industrial utópica de Alexander Hamilton, mas quando voltei, com meu diretor de arte (Mark Friedberg), rapidamente chegamos à conclusão de que teríamos de montar nossa Paterson, com cenas em outros lugares. Há muita pobreza, agora, muito mais que há 25 anos.” E Jarmusch contou coisas curiosas – “Fiquei um mês na cidade fazendo a preparação do filme. Viajei muito de ônibus, porque sabia que teria de filmar o exterior do ponto de vista de Adam sentado na direção do ônibus, ou seja, acima de todo o mundo nas calçadas e no interior dos carros. O sujeito fica um degrau acima, num limbo. Não havia pensado nisso, mas o local me ajudou a entender o que era intuição. Como um motorista vira poeta.” Ron Padgett, da Escola de Nova York, criou os poemas de Paterson/Driver.
Questionado, Jarmusch listou seus poetas preferidos. Começou com Dante, “que usava a língua vernacular. Não conheço suficientemente o italiano, mas uma boa tradução ajuda a entender que ele escreveu na linguagem da rua do seu tempo”. Depois, Rimbaud. “Para mim é o mais revolucionário dos poetas. Sua obra é tão rica e complexa como sua vida, que, aliás, a explica.” E Wallace Stevens, um executivo que ninguém sabia que escrevia. O poeta longe da torre de marfim. Imerso na vida. Paterson é sobre isso.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.