Mal reconhecemos o personagem neste que é tido como seu primeiro filme e que agora completa o centenário. Making a Living (Ganhando a Vida, 1914) é o primeiro trabalho de Chaplin na produtora Keystone, de Mack Sennett, e foi realizado por um ator de vaudeville que pouco ou nada conhecia de cinema. Tudo era novidade para Chaplin.

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E nem sempre novidade bem-vinda. Charlie Chaplin, formado na comédia, tinha ido a Los Angeles com pretensões de se tornar ator dramático. Shakespeare era sua meta. E foi nessa ilusão que embarcou a convite de Sennett. Logo descobriu que se tornaria ator das comédias rasgadas do estúdio. Não tinha noção do que era o cinema. Para ele, um filme era como um teatro filmado e ficou surpreso que as cenas fossem filmadas fora de ordem para apenas na montagem tomarem a forma cronológica do enredo.

Neste primeiro filme, cujo título em português é Carlitos Repórter, para aproveitar a fama do personagem surgido apenas depois, vemos Chaplin com um bigodinho caído entre os lábios e não aquele famoso “quadradinho” debaixo do nariz que, dizem, inspirou Hitler quando o ditador deixou crescer o seu. As roupas também são outras e até elegantes se comparadas aos andrajos posteriores do vagabundo.

Na história, Chaplin faz uma espécie de atravessador. Deseja ingressar no jornalismo e, para tal, segue um repórter e, quando este consegue um furo, Carlitos (vá lá, vamos chamá-lo assim) se apropria da notícia. Isso, além de tentar roubar-lhe a namorada. É, no fundo, um mau-caráter.

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Aliás, a Keystone era conhecida por suas comédias pesadas. Talvez hoje elas não fossem aprovadas diante da dupla moral do politicamente correto vigente. Tanto assim que Richard Attenborough, em Chaplin, ao reproduzir a vida do artista, atenuou o conteúdo desses primeiros filmes de que ele participava. Não que fossem indecentes. Nada disso, mas eram mais diretos, digamos assim, até meio agressivos. Neles, seus personagens não eram exatamente o que se poderia chamar de tipos exemplares. Bêbado, inconveniente, lúbrico, desonesto com frequência, o personagem de Chaplin ainda estava muito distante daquele outro que nos habituamos a amar, uma mistura de lirismo e esperteza. Haveria ainda um longo percurso para chegar a ele.

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Mas já no filme seguinte, também de 1914, já vemos outro Chaplin, rapidamente amadurecido para o trabalho com a câmera e vestido de maneira muito parecida ao personagem que o consagraria. Como isso se deu? Há versões.

Numa delas, Chaplin ficara muito deprimido com o resultado de Carlitos Repórter. Em seu livro de memórias faz autocrítica: “Eu era canhestro”, escreve, sem meias-palavras. Confessa que estraga todas as gags ao antecipá-las, roubando ao público a surpresa que acompanha o riso. Mas, além disso, acusa o diretor Henry Lehrman de haver descartado suas melhores cenas na montagem. O próprio Sennett, teria lhe dito com franqueza que no próximo trabalho seria bom fazer melhor, “senão…”.

Desse modo, era um Chaplin deprimido e pensando nos rumos de sua carreira que estava reunido com seus colegas de estúdio, preparando-se para o próximo projeto. Tinha ar tão desamparado que, mesmo no ambiente ultracompetitivo de Los Angeles, começavam a sentir pena do “inglesinho”. Como sabemos, o “inglesinho” tinha algumas coisas a mostrar e começou a fazê-lo já em Mabel’s Strange Predicament, conhecido entre nós como Carlitos no Hotel. Aqui, ele é um bêbado incômodo, que estaciona no lobby de um hotel e importuna hóspedes, em especial as do sexo feminino. Mas o que chama atenção são seus trajes, desta vez bem parecidos ao Carlitos clássico.

Segundo um dos seus parceiros da época, o comediante Chester Conklin, o insight de Chaplin nasceu naquele momento de depressão em que duvidava da viabilidade de sua carreira no cinema. Segundo diz Conklin em seu depoimento ao livro de Sennett e Shipp, King of Comedy, Chaplin teria lhe confidenciado a intenção de abandonar a carreira no cinema, mal iniciada ainda. “É tudo muito rápido. Jamais farei sucesso nesse meio”, disse.

Em meio a essa deprê, Chaplin pôs-se a andar pelo quarto do hotel, enquanto seus companheiros jogavam cartas. Numa súbita inspiração, pediu para provar um par de calças de um deles, que estavam penduradas num cabide e era muitos números acima do seu. Vestiu também uma casaca que, ao contrário, era apertada a ponto de não abotoar. Achou também um bigode postiço, recortou-o até que virasse um retângulo e o colou em cima do lábio. Encontrou um chapéu-coco e uma bengala engraçada. Vestiu um par de sapatos também muito grandes e ensaiou uns passos com os pés virados para fora. Nesse ponto, o jogo de cartas havia cessado e seus parceiros não paravam de rir. Nascia ali o personagem, ou alguém que muito se aproximava dele. Este, pelo menos, é o depoimento de Conklin.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.