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Filme inédito que registra funeral do jornalista João do Rio ganha restauração

Quem saltava do bonde no centro do Rio antigo tinha a visão do céu e do inferno, ao mesmo tempo. De um lado, ainda havia a extinta Praia de Santa Luzia e do outro lado, o clima sombrio da Santa Casa e do necrotério, rodeado dos chamados ‘urubus’. Em 1910, o jornalista, escritor e teatrólogo João do Rio registrou em A Alma Encantadora das Ruas o trabalho peculiar de sujeitos que vendiam serviços funerários para pessoas em luto, que saltavam do bonde a caminho do necrotério. “Quando quiser uma coroa…”, ofereceu um deles ao escritor. “Deus queira que não”, respondeu o jornalista.

Onze anos depois, a morte visitada por João do Rio naquele dia chegaria para ficar. Pseudônimo de Paulo Barreto, o jornalista que fez de seus passeios pela cidade retratos mais que encantadores do cotidiano carioca, morreu em 23 de junho de 1921. Um registro do cortejo de seu funeral foi encontrado em filme inédito pelo pesquisador e restaurador Antonio Venancio. O enterro de Barreto esteve entre os mais frequentados do Brasil, com um público estimado de 100 mil pessoas, ao lado de Getúlio Vargas (300 mil) e Carmen Miranda (60 mil).

O trabalho de Venancio para encontrar o filme foi tão minucioso quanto as derivas do jornalista pela ruas cariocas. Ele conta que há cinco anos assistiu ao filme do enterro durante uma mostra da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, que incluía na programação a filmagem de uma corrida de cavalos no Jockey Club de São Paulo, da mesma época. “Mais tarde busquei pelo filme, e entrei em contato com os responsáveis pela Cinemateca e o Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, mas ninguém sabia de seu paradeiro.” Assim como na vida de João do Rio, algumas informações preferem bater à porta. E elas também chegaram na casa de Venancio. “Uma mulher me procurou e disse que tinha um filme de meu interesse. Nas mãos ela tinha a lata com o filme do enterro de João do Rio.”

O filme com 13 minutos de duração exibe diversos pontos do trajeto até o cemitério São João Batista, mesmo local em que Carmen Miranda e, recentemente, a cantora Miúcha, foram sepultadas. Em um dos trechos, um quadro informa, na grafia da época: “Quando a morte cruel, e implacável, arrebatou do seio dos vivos a figura iminente do ‘escriptor’ e jornalista Paulo Barreto, um manto de crepe, descerrou-se sobre a cidade do Rio de Janeiro, estendendo-se por todo o Brasil e desdobrando-se ‘atravez’ do oceano para enlutar Portugal também.” Em outro trecho, o quadro anuncia a passagem do cortejo pelo palacete em que vivia “o grande amigo e defensor dos ‘opprimidos’.”

Colegas de trabalho da redação do jornal A Pátria também aparecem reunidos na última homenagem. Na época, o folhetim carioca criado pelo jornalista tinha um posicionamento pró-colônia portuguesa e custou-lhe ameaças de morte e ofensas pessoais, de cunho racista, por ser negro, gordo, e também por sua homossexualidade assumida. No filme, também há a presença de Ruy Barbosa, “o expoente máximo da nossa nacionalidade, foi pessoalmente render a sua homenagem a Paulo Barreto.”

Segundo o pesquisador, o filme fabricado em nitrato de celulose estava bastante danificado, com sinais de deterioração por tempo e mal acondicionamento. O material produzido a partir da polpa da madeira com ácido nítrico é altamente inflamável.

No Brasil, há longos históricos de incêndio em estúdios e acervos de filmes por combustão espontânea. Em 2016, a Cinemateca Brasileira, um dos maiores acervos da América Latina, perdeu mais de 500 obras. Entre os rolos originais destruídos estava filmes de cinejornais da década de 40 e títulos não divulgados. Na época, a Cinemateca informou que todo o material estava preservado em cópias. Foi o quarto incêndio registrado na Cinemateca, depois de 1957, 1969 e 1982.

Mas não foram só os museus que tiveram seus arquivos perdidos. Entre os anos 1960 e 1990, quase todas as emissoras de TV enfrentaram tragédias semelhantes. Em 1969, 1971 e 1976, a Rede Globo perdeu filmes e fragmentos da década de 1960 em um incêndio na sede paulista. Estima-se a destruição de 920 a 1.500 fitas, de novelas a telejornais. Em 1969, a Rede Bandeirantes perdeu alguns materiais mas conseguiu preservar fitas dos teleteatros de Cacilda Becker e dos jogos do Brasil na Copa 1970. Em 1991, o SBT lamentou a destruição de arquivo raros como a passagem de Silvio Santos pela TV Tupi, Paulista, Globo e Record.

A solução para o documento encontrado por Venancio foi buscar a produtora Afinal Filmes que converteu o material em um filme digital em 4K. “É um processo que quase ninguém faz no Brasil”, aponta Venancio. “O equipamento é um scanner por onde passa o filme de nitrato. Uma luz emitida, envia um sinal digital de cada frame, convertendo o filme.” Após a restauração, Venancio pretende organizar a exibição do filme e posteriormente depositá-lo no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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