O baião vem debaixo do barro do chão, já dizia Gilberto Gil numa de suas belas canções, inspirada certamente em seu mestre Luiz Gonzaga (1912-1989). O baião teve um rei famoso (o pernambucano Gonzaga) e um “doutor”, o compositor e poeta cearense Humberto Teixeira (1915-1979), que permaneceu à sombra do parceiro de tantos clássicos como “Asa Branca” e “Assum Preto”.
Teixeira – um dos pioneiros na defesa do direito autoral no Brasil – nunca reivindicou para si a invenção de um dos gêneros mais populares do Brasil junto com o samba. Mas o documentário “O Homem Que Engarrafava Nuvens”, de Lírio Ferreira, que estreia amanhã em circuito nacional, contribui para jogar luz sobre a identidade desse “homem invisível”, mas principalmente traça a rota do baião.
Não por acaso, a primeira imagem do filme é uma alameda do cemitério onde Teixeira está enterrado (e recebe uma visita da filha Denise Dummont, produtora do documentário) e a trilha sonora é a canção “Légua Tirana”.
É um road movie, confirma Ferreira, e o baião é a música do êxodo, da migração. Portanto, do vaqueiro paramentado que desbrava picadas na mata a um passeio de bicicleta do talking head David Byrne pelas ruas pavimentadas de Nova York – da origem de seu universo à explosão da supernova -, a estrada simboliza o baião em movimento.
“É também um filme sobre uma época”, diz Ferreira. “Tem esse mote de ser um período de pós-guerra, o samba entrou em decadência e de 1945 a 1954 o baião assumiu como o grande gênero brasileiro.”
É um período ao qual especialistas se referem como o da transição entre o samba-canção e a bossa nova. “Papai não se incomodava de não ter o nome creditado pelo povo em relação a suas canções. O que o deixava contrariado era o fato de os historiadores ignorarem a importância e o sucesso que o baião tiveram naquele período”, diz Denise Dummont. “O baião pode ser o elo perdido entre o samba-canção e a bossa nova”, sugere a atriz.
Há também imagens raras do Rio antigo, de um encontro de Gonzaga e Teixeira, além dos Mutantes, Raul Seixas e trechos de outros filmes, resultado de minuciosa pesquisa de Antonio Venâncio, projeto desenvolvido desde 2002.
A voz de Teixeira narrando a própria história foi extraída de duas entrevistas, uma para o pesquisador cearense Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, e outra para a Rádio JB.
O baião colocou o Nordeste na moda nos centros urbanos do Sudeste – com o crescimento da mão de obra dos migrantes e a força do canto de Luiz Gonzaga e Carmélia Alves. Como diz o compositor Otto no documentário,
“Humberto era a pólvora e Gonzaga era o canhão. Quando os dois se juntavam… bum!!!!” O pavio se reacende no documentário “colocando Teixeira no tempo dele”, nas palavras do diretor.