O escritor Jorge Luís Borges cultuava clássicos e literaturas que só eruditos conheciam, mas também se rendia a um gênero popular: o western ou faroeste.
Para Borges, o faroeste foi o épico do século 20. Pensando bem, faz sentido, ainda que – já que estamos mesmo no território heterodoxo – o futebol também é um sério candidato a épico do século passado, apesar desta afirmação fazer Borges dar rodopios no túmulo. Voltemos ao faroeste.
Quando se fala em faroeste fala-se de duas coisas, principalmente: literatura barata e cinema.
Literatura barata que começou com revistas populares nos Estados Unidos, depois livros populares e finalmente gibis, que se tornaram populares no Brasil e no resto do mundo.
Se o faroeste foi épico, como disse Borges, ele deve muito aos dois gêneros.
Eles fizeram pelo Velho Oeste o que Homero fez pela Grécia antiga, ambos mentindo sem medo de mentir. O primeiro gênero criou histórias espetaculosas do Oeste cheias de homens indômitos que fascinavam comportados cidadãos da costa leste e o segundo foi atrás, algumas décadas depois, principalmente das versões de fatos e de homens que historicamente foram menos heroicos – ou nada disso.
Além, claro, de histórias sobre um esporte popular no Velho Oeste que divertiu o leste e a Europa muito tempo, matar índios sob o pretexto de serem cruéis, pagãos e atrapalharem o progresso.
Assim, o épico do Velho Oeste reside sobre um amontoado de mentiras, algumas verdades, violência e genocídio, além, claro, do suor de colonos que plantavam cidades nos lugares mais estranhos da América do Norte.
Por estas e outras, quando se fala de Velho Oeste, todo cuidado é pouco porque durante muito tempo valia a versão. Como o caso de Bufalo Bill, um enganador. Levou o filho do czar da Rússia no bico e continuou herói até Robert Altman o desmascarar em um filme arrasador chamado em inglês Buffalo Bill and the Indians, or Sitting Bull’s History Lesson, de 1976, com Paul Newman.
Depois disso, a carreira de Willian Frederick Cody no cinema nunca foi a mesma. Casos como estes se repetem. Um punhado de heróis do Velho Oeste é como Cody, não resiste a um olhar profundo. Tem covarde e criminoso em abundância posando de mocinho.
Agora, é a velha história: se for botar o Velho Oeste em pratos limpos, o faroeste evapora na frente do sujeito e o épico vai pro espaço. Como no futebol, outro épico do século.
Por isto vamos às versões do faroeste no cinema, algumas fantásticas. Como High Noon (Matar ou morrer; em Portugal, O comboio apitou três vezes, 1952), de Fred Zinnemann, que causou fúria profunda em John Wayne, o Ulisses do Velho Oeste, a ponto dele fazer uma versão americanamente correta do filme, Rio Bravo (Onde começa o inferno, 1959), embora clássica mesmo seja a com Gary Cooper. A virtude do remake de Howard Hawks é mostrar a sedutora Angie Dickinson num corpete negro. De arrepiar.
High Noon desmistifica o colono indômito disposto a enfrentar qualquer desafio. No filme, uma cidade até bem comportada é, na realidade, habitada por covardes, que cogitam abandonar o xerife aos bandidos para se livrarem de problemas.
O xerife, cinquentão com uma noiva de vinte e poucos, leva um choque ao descobrir a natureza de seus amigos. Ele mata os bandidos, pega a mocinha e vai viver em outro lugar. O mínimo que podia fazer.
No lado oposto, outro clássico do faroeste, Shane (Os brutos também amam, de George Stevens, 1952). Ao contrário de High Noon, mostra uma cidade perdida num cenário inóspito.
Colonos chegam para alargar a fronteira, o indelével homem mau (Jack Palance), o pistoleiro solitário atrás de um lugar para viver em paz, o código de honra (a tensão sensual entre o herói e a mulher do patrão dá em nada) e uma visão higienizadora do pistoleiro, como necessidade para limpar a área dos maus elementos para os bons colonos se estabelecerem.
O irônico é que embora o cenário seja árido, a mensagem é americanamente correta, o oposto de High Noon. A maquiagem dos fatos no Velho Oeste está presente em outro clássico, The man who shot Liberty Valance (O homem que matou o facínora, 1962), de John Ford.
A,ssim como em Shane há o sentimento ambíguo da mocinha por dois homens, o rústico de armas e o trabalhador. John Wayne, um rude rancheiro e James Stewart, um advogado cheio de boas intenções. O primeiro mata o facínora (Lee Marvin), o segundo fica com a fama e com a dama. O primeiro morre solitário e o segundo vira senador em Washington. Um filme que fala do Velho Oeste sem mistificações.
John Ford já havia dirigido um clássico estranho, se levar em conta sua visão glorificadora do Velho Oeste. The Searchers (Rastros de Ódio, 1956) mostra as relações entre brancos e índios sem cair no maniqueismo – há pelo menos outros dois bons neste assunto, Little Big Man (Pequeno grande homem, de Arthur Penn, 1970) e A man called horse (Um homem chamado cavalo, de Elliot Silverstein, 1970). Mais uma vez o velho John Wayne na pele de Ethan Edwards, um homem que odeia índios, dá conta do recado. Um filme sensível sobre danos, perdas e sobrevivência.
Nos anos 60, os filmes sobre o Velho Oeste romperam os cânones estabelecidos por John Ford e Hollywood. O épico virou samba do crioulo doido. Que começou com The Magnificent Seven (Sete homens e um destino, 1960), refilmagem de Os Sete Samurais, de Akira Kurosawa, que incorpora o México como antro de bandidos ou miseráveis – hábito comum daí em diante -ao cenário do Velho Oeste. Naquele ano os mexicanos se ferraram também em The Alamo (de John Wayne), filme que consolida a troca dos mexicanos como vilões preferenciais, no lugar dos índios impiedosos.
No entanto, o fenômeno mais avassalador veio da Europa, quando os italianos entraram no Velho Oeste com o até bem comportado Un Dollaro Bucato (O dolar furado, 1965), de Giorgio Ferroni, com Giuliano Gemma e o gótico Django (1966), de Sérgio Corbucci, com Franco Nero, que mostrou o Oeste como um grande lamaçal, além de um ex-soldado que carrega um bizarro caixão de defunto com uma metralhadora em seu interior.
Os italianos mandaram os cânones pro espaço e ousaram sem piedade. Os americanos ficaram sem jeito de fazer faroeste, embora aparecessem títulos interessantes como The Profissionals (Os Profissionais, 1965), com um quarteto da pesada. Não tinham como competir com tanta violência, tiro, esculacho e sangue.
O Velho Oeste podia não ser aquilo, mas estava mais perto que os filmes de Hollywood. O que não quer dizer que o faroeste italiano não legou clássicos: a trilogia de Sérgio Leone, Per un pugno di dolarri (Por um punhado de dólares, 1964 – na verdade uma versão de Yojimbo, de Kurosawa), For a Few Dollars More (Por alguns dólares a mais, 1965) e The Good, The Bad and The Ugly (O bom, o mau e o feio ou Três homens em conflito, de 1966), são o que há de melhor no gênero.
Leone ainda fez um grande faroeste vagaroso: Once Upon a Time in The West (Era uma vez no Oeste, 1968), em que Henry Fonda faz um inédito bandido frio. Nos filmes de Leone a música de Ennio Morricone era tão importante quanto as balas das pistolas e os socos.
Quando o gênero definhava na Itália, Sam Peckinpah radicaliza os elementos introduzidos pelos italianos: depois de The Wild Bunch (Meu ódio será sua herança, 1969), parecia impossível fazer um bom filme sobre o Velho Oeste. Mas o discípulo e ator de Sérgio Leone chamado Clint Eastwood – segundo maior ícone do gênero – mostrou em 1992 com Unforgiven (Os Imperdoáveis) que, procurando, sempre há uma boa história para ser contada.
Foi o último grande filme do gênero. E não será surpresa se passar a penúltimo. Se aparecer um sujeito e dizer: “Ei Jack, chegou a tua hora”, começa tudo de novo.