A fonte de inspiração para "Quanto Vale ou É por Quilo?" é um conto de Machado de Assis chamado Pai contra Mãe, publicado em 1906, dois anos antes da morte do escritor. Não se trata de uma adaptação. Nada disso. É um ponto de partida, porém importante para esse que é o novo longa-metragem de Sérgio Bianchi. A história de Machado se passa na época da escravidão. Um dos personagens é um sujeito que vive de capturar escravos fugidos. A outra é Arminda, uma escrava, que escapou e tem a cabeça a prêmio. Cândido – esse é o nome do "caçador" – é um pobre-diabo, e precisa de dinheiro para manter o filho, senão ele será entregue a uma casa de caridade. Arminda está grávida. O interesse de Cândido conflita com o de Arminda. Pai contra mãe – esta é a razão do título.
No centro da história de Machado de Assis está a constatação de que a estrutura escravocrata gera uma situação de conflito de interesses em que não há solidariedade. Não é nem o caso de um conflito entre ricos e pobres, entre patrões e empregados, coisas do gênero. São dois oprimidos – a escrava e o homem livre porém pobre – e um se vê "obrigado" a devorar o outro. Transposta para os dias de hoje, a triste fábula de Machado de Assis pode ser ainda aplicada – na luta pela sobrevivência, cada vez mais renhida – não haveria espaço para a solidariedade social.
Pior ainda – essa solidariedade pode ser instrumentalizada e transformar-se em fonte de rendimento. É a grande acusação que o filme faz às ONGs de direitos humanos. Na ótica de Bianchi, elas lucram com a caridade. Mantêm uma estrutura que precisa ser custeada e boa parte dos recursos acaba investida nelas mesmas. Além disso, o filme insinua que muitas ONGs se prestam à lavagem de dinheiro e à corrupção. Enfim, é o pior dos mundos. Vive-se numa sociedade tão injusta que precisa de caridade, só que a caridade se transforma em negócio lucrativo para quem a explora. Pode-se dizer que o filme toma alguns casos particulares e, que quem quiser generalizar, o faz por conta própria. Mas não deixa de ser uma visão pessoal do diretor.
Aliás, todo filme autoral (e os de Bianchi são, goste-se ou não deles) expressa uma visão de mundo particular, ao lado de uma concepção do que seja o cinema. Há uma estética e uma ética envolvidas no projeto, em qualquer projeto digno desse nome. Bianchi filma de jeito simples, para dizer o mínimo. Há quem chame seu estilo de desleixado. Enfim, nada elaborado. Deseja discutir idéias e as preocupações formais não estão no seu universo de interesse. É assim nesse novo filme, como foi nos anteriores como A Causa Secreta (também inspirado em Machado de Assis) e Cronicamente Inviável.
O que nos diz o cinema de Bianchi? Que vivemos em um país de piratas. Todos tentam tirar o seu o mais rapidamente possível e ninguém está interessado em construir nada. Ninguém presta, por motivos diversos, porém convergentes, porque todo mundo é movido por razões egoísticas. Os ricos não abdicam dos privilégios. Os pobres afundaram na brutalidade. A classe média alienou-se do mundo, trancada em seus condomínios de segurança. Ninguém vale nada, o País não evolui e não tem solução, saída, remédio ou mesmo paliativo para os seus males. É um cinema para se cortar os pulsos na saída.
Passa indignação? Sim, e é esse sentimento que o salva talvez do cinismo completo, ou do niilismo absoluto. Mas passa também uma certa soberba. Como se o diretor visse o mundo de um ponto ideal. Como todo moralista, este também se julga acima dos outros. "Se ninguém vale um caracol, eu pelo menos valho alguma coisa, pois estou me expondo para denunciar a ruína geral." É um cinema da decadência, mas da qual o autor se exclui.
Assim, a idéia de fazer um paralelo entre a época da escravidão e os dias de hoje parte do pressuposto de que o ser humano é carne descartável, ontem como agora. O que não deixa de ser verdade, mas sob condições históricas diferentes, fato que o filme ignora. Ao defender a tese de que em substância nada se alterou, e nada se altera jamais, coloca-se na posição conservadora de que não adianta mesmo fazer nada, já que o País não presta, fato condizente com a qualidade das pessoas que nele moram. Só se salva o diretor do filme. Era a mesma tese de "Cronicamente Inviável", que acabou gerando um bom debate. Desconfio que, desta vez, essa postura de cinema radical, mas que ignora tanto a História como a política, vai encontrar uma platéia já cansada de tanto aniquilamento. (Luiz Zanin Oricchio)