Uma geração constrói sofisticados pagodes de madeira enquanto a de seus filhos dedica-se à linha de montagem da construção civil nas grandes cidades. Esse é o pano de fundo histórico de A Menina dos Campos de Arroz, de Xiaoling Zhu, ambicioso painel chinês traçado com as tintas da simplicidade.

continua após a publicidade

A diretora, estreante em longas-metragens e radicada na França, concentra-se na cultura Dong, com dialeto e traços culturais próprios, características particulares ameaçadas pela modernização acelerada do país. Os Dong, cerca de 3 milhões de pessoas, vivem no sudoeste da China e até poucas décadas atrás permaneciam em relativo isolamento.

Com o avanço da modernidade, certos costumes ainda subsistem, mas já se encontram ameaçados. Aliás, esse fenômeno do esfarelamento da tradição na China vem sendo acompanhado pelo maior dos cineastas chineses da atualidade, Jia Zhang-ke – que, de acordo com Walter Salles, é o mais importante diretor contemporâneo do mundo. A velocidade com que a China se desenvolve, e devora-se a si mesma, é assustadora e fornece material de reflexão não apenas para seu povo.

Em A Menina dos Campos de Arroz, esse processo vertiginoso é mitigado por um proposital ritmo lento e pelo olhar carinhoso e quase etnográfico da cineasta. Como se Xiaoling assistisse ao desaparecimento de algo precioso e não fosse capaz de esboçar qualquer gesto de resistência, restando apenas lamentar um processo inevitável.

continua após a publicidade

Então, o que lá se tem é a plantação artesanal do arroz, em terras alagadas, um trabalho brutal para os seres humanos. Há a família da narradora A Quiu, cujas duas pontas simbolizam os impasses da modernidade. Seu avô é, como se disse, um arquiteto de pagodes, de casas de madeira e pontes sagradas. Um artesão. O pai e a mãe de A Quiu passam a maior parte do tempo na cidade grande, onde se empregam na construção civil, que lhes dá melhor remuneração. São obrigados a voltar ao campo quando a avó morre e não há mais ninguém para se ocupar de A Quiu e seu irmão menor. A família entra em crise financeira. Xiaoling se detém num desses típicos dilemas interioranos, com a alternativa entre comprar um velho caminhão ou um búfalo para ajudar na aragem. Registra também os costumes locais, como as lutas entre animais. O filme busca essa imersão no cotidiano.

A história é narrada em primeira pessoa pela garota A Qiu. Enquanto ela observa seu mundo, sonha estudar e se tornar escritora. Mas os pais não têm dinheiro para mandá-la a uma escola secundária de qualidade. Precisa passar por um exame classificatório e qualificar-se para uma bolsa de estudos. Senão, terá de pagar, e os pais não têm dinheiro. Que isso aconteça na República Popular da China é de pasmar. Enfim, é o enredo da história e eles devem saber do que falam.

continua após a publicidade

O filme é de uma delicadeza ímpar. Alterna esse fiapo de história, na verdade uma crônica do dia a dia, a uma visão claramente documental.

Não é defeito, apenas opção de abordagem. Aliás, a diretora, em entrevistas, tem citado o cineasta francês François Truffaut, para quem todo filme de ficção tem um documentário escondido em si. De fato, A Garota dos Campos de Arroz mostra, bem à maneira de um documentário, o cotidiano duro no campo, com as pessoas dependendo dos favores da natureza para sobreviver. A filmagem acompanha o ciclo das estações e a alteração que provoca no ritmo de vida das pessoas. Uma circularidade, quebrada de modo abrupto em determinado momento.

Resta observar que as opções de linguagem cinematográfica de Xiaoling colocam-se em conformidade com o seu projeto e, presume-se, sua filosofia de vida. Há o tom melancólico de um mundo em processo de desaparecimento, mas, ao mesmo tempo, esse mundo é mostrado em toda a sua placidez e deslumbramento visual. Lembra, de alguma forma, o belo O Cheiro do Papaia Verde, do vietnamita Tran Anh Hung, em que a beleza parece tão perceptível que provoca uma sensação epidérmica no espectador.

Há também beleza e melancolia na maneira como tudo é descrito por A Quiu, narrativa que tem a força da inocência, pois tudo é filtrado pelo olhar de uma garota de apenas 12 anos. O desejo de se tornar escritora é bem claro para ela mesma. Não se trata de subir na escala social ou de angariar uma posição de prestígio, e nem mesmo atende a qualquer ambição intelectual. Quer virar escritora para “contar como era a vida aqui”. Função de testemunha. Como se falasse de um modo de vida destinado a sobreviver apenas nas lembranças e nas palavras.

Quando morrerem todos os que o experimentaram, restarão apenas as palavras. E as imagens, o que faz parte da proposta semidocumental de Xiaoling Zhu. A força expressiva dos atores não profissionais, a placidez das imagens, o ritmo contemplativo e o desfecho, tão inesperado quanto fatalista, colocam o filme na contracorrente da modernidade voraz. Por isso mesmo é bom vê-lo.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.