‘Filha Distante’ passa por desvendar ausências

Há um momento de Filha Distante em que Marco Tucci, o personagem, de Alejandro Awada, está sentado à mesa com a filha e o marido dela. Aos 50 anos, ex-alcoólico, Tucci nem sabia que a filha se havia casado e que já é avó. Usando como pretexto uma pescaria na Patagônia – o filme chama-se, no original, Dias de Pesca -, ele tenta retomar o contato interrompido. Amante de ópera, canta a ária Che Gelida Manina, da Bohème, de Puccini. A escolha da música é reveladora. ‘Aspetti, signorina/le diró con due parole/chi son e chi faccio/come vivo’. Traduzindo. ‘Espere, senhorita/Vou dizer em duas palavras/quem sou e o que faço/como vivo.’

Ele canta, emociona-se e a atriz Victoria Almeida, que faz a filha, deixa transparecer sentimentos contraditórios. A garota, com certeza, amou esse pai, mas ele se transformou num estranho. Não sabe nada dela nem da mãe. E o rancor termina por se manifestar. No cinema argentino das histórias calorosas situadas na classe média, o diretor Carlos Sorín é quase um corpo estranho. É o Chekhov argentino, atraído por histórias mínimas. É, por sinal, o título do filme que o tornou internacionalmente conhecido, em 2002. Desde então, e a cada dois anos, ou quatro, Sorín segue apresentando suas histórias mínimas. O Cachorro, A Janela, agora Dias de Pesca (Filha Distante). É um cinema minimalista, descarnado, em que os silêncios são tão importantes (ou mais) do que aquilo que as pessoas dizem. Sorín, que também escreve seus roteiros (quase todos), deixa muitos brancos que precisam ser preenchidos pelo espectador.

Nada é muito claro nem conclusivo. Quando as filha estoura – ‘O que você quer? Quer me destruir, também?’ – é evidente que se refere a uma situação familiar, ao mal que o pai alcoólatra deve ter feito à mãe, mas isso tem de ser deduzido pelo espectador. Da mesma forma, todo o desfecho no hospital, o reencontro com a lutadora de boxe destroçada pela boliviana que o treinador menosprezava, ganha uma dimensão sutil em relação à história principal, a de Marco Tucci. Alejandro Awada possui grandes olhos tristes. Se fosse um palhaço, seria um palhaço triste e, no fundo, é o que é, com seu sorriso caído, suas pequenas histórias.

Assim como seu cinema evoca Chekhov, Sorín também é tributário de uma tradição neorrealista que passa pela parceria de Vittorio De Sica com o roteirista (e teórico do movimento que floresceu no cinema italiano do pós-guerra) Cesare Zavattini. Há algo de Umberto D aqui. E também algo de burlesco na história mínima – incompleta? – de Marco Tucci. E é seguindo, identificando-se com suas pequenas ações, que o espectador percebe que a nova história mínima de Sorín é, no fundo, a de um renascimento. Do limite do seu abandono, Tucci descobre uma fresta, uma janela. A filha, afinal, não é tão distante. A pesca malsucedida pode recomeçar. A vida recomeça. É, sem que nada ocorra – tudo depende do olhar do público -, uma experiência rara, imperdível.

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