O escritor romeno Mircea Eliade (1907-1986) é reconhecido como um dos grandes especialistas em história das religiões, autor de clássicos como O Mito do Eterno Retorno (1949), Mefistófeles e o Andrógino (1957) e O Sagrado e o Profano (1957). Sua obra ficcional é menos comentada, mas, pouco a pouco, ganha espaço nas estantes das livrarias brasileiras. Fernando Klabin, tradutor responsável pela difusão desse legado, assinou (em 2011) a versão para o português de Senhorita Cristina (Editora Tordesilhas) e responde agora por uma das mais originais obras de ficção de Eliade, Uma Outra Juventude (1978), acompanhada no livro de outra pequena mas igualmente perturbadora narrativa, Dayan (1980), as duas do último período de vida do autor.

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Uma Outra Juventude ganhou uma adaptação para o cinema em 2007, dirigida por Francis Ford Coppola. Seu filme Velha Juventude (Youth Without Youth) foi recebido sem entusiasmo pela crítica a não chegou a conquistar o público em sua estreia (rendeu algo em torno de US$ 2,6 milhões), apesar do requinte formal (o fotógrafo é o romeno Mihai Malaimare Jr.), do ótimo elenco (Tim Roth, Bruno Ganz) e, obviamente, da capacidade intelectual de Coppola, que buscou ser fiel às complexas questões filosóficas tratadas por Eliade em seu livro, fazendo poucas concessões ao espectador médio.

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Por vezes, esse mesmo espectador tem a (justa) impressão de que o montador Walter Murch (o mesmo de Apocalypse Now) tomou um ou dois martinis a mais ao editar o filme, invertendo o tempo da ação. Para complicar, o protagonista da história descobre que tem um doppelgänger, um duplo nada parecido com os de Edgar Allan Poe – e mais próximo de um vulto projetado por seu inconsciente. Como mostrar isso no cinema sem que a visão dessa estranha figura evoque um filme de terror barato de Roger Corman?

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Coppola bem que tentou, mas o resultado não se compara à narrativa literária de Eliade, que sintetiza num mesmo personagem o drama do envelhecimento, o desconforto da exclusão social, a dúvida sobre a transcendência e a angústia do tempo perdido. Na autobiografia de Eliade, aliás, fica evidente o terror que a história representou em sua vida, o peso de ter testemunhado um genocídio, passado fome, ter sido injustamente preso e, ainda assim, encontrar um motivo para viver no exílio – o autor romeno morreu nos EUA e nunca voltou à terra natal, embora insistisse em manter esse vínculo (seus livros foram escritos em romeno).

De certo modo, o professor de Uma Outra Juventude, Dominic Matei, guarda traços de Eliade, ainda que o personagem, ao contrário do autor, nunca tenha publicado uma linha – e ele planejou um livro durante toda a vida, sobre a origem da linguagem. Matei é um septuagenário que, na Páscoa da Ressurreição, em 1938, é atingido por um raio ao atravessar a rua. O simbolismo da data deve ser creditado à própria formação religiosa de Eliade, cristão profundamente marcado pela leitura do psiquiatra Carl G. Jung, que, aliás, conheceu e entrevistou nos anos 1950.

Decidido a se matar, o acadêmico Matei desembarca em Bucareste e, quase fulminado, é levado a um hospital, onde, por milagre, não apenas se recupera como rejuvenesce, voltando aos 30 anos, após receber no corpo a descarga de energia do raio. Mais: desenvolve superpoderes que deixam atônitos não só seu médico e os enfermeiros como agentes secretos de Hitler, que planejam sequestrar o super-homem para estudar seu caso em território alemão.

O profético Mircea Eliade costumava dizer que o raio é a manifestação xamânica da natureza. Ao sair ileso do acidente e escapar do processo convencional de envelhecimento, Matei conquista a capacidade de entrar no tempo mítico pela intermediação de seu duplo. Vira, enfim, a demonstração ficcional didática das teorias do escritor romeno, expressas em O Mito do Eterno Retorno e O Sagrado e o Profano.

No primeiro ensaio, que trata da experiência existencial do ser diante do tempo e da história, Eliade conclui que o homem contemporâneo tem extrema dificuldade de estabelecer sintonia com os ciclos naturais, ao contrário de nossos antepassados. No segundo, o pensador reflete sobre o valor especial que um lugar sagrado tem para o homem religioso, abordando em particular o papel do xamanismo como forma arcaica de êxtase – e a relação de Matei com sua persona, cuja prova de existência são duas rosas surgidas do nada, é, de fato, uma experiência xamânica, assim como o dom de falar outras línguas (inclusive as mortas) que tem o acadêmico Matei (outro paralelo com a vida real do poliglota Eliade).

Houve quem identificasse nessa associação certa parábola gnóstica disfarçada do autor, empenhado em alertar a sociedade contemporânea sobre as consequências da dessacralização no mundo moderno. Seu personagem Matei salta do desencanto para o deslumbramento ao ganhar a chance de uma segunda vida – paradoxalmente, vinda do céu por meio de um raio. Já em Dayan, a narrativa mais curta, essa mudança se dá por meio da figura do mítico personagem do judeu errante, que ajuda um jovem matemático a decifrar o complexo teorema de Gödel. Sem a interferência do sobrenatural, parece dizer Eliade, estamos condenados ao nosso estado natural: a mais profunda e trágica ignorância.

‘UMA OUTRA JUVENTUDE’

AUTOR: MIRCEA ELIADE

TRADUÇÃO: FERNANDO KLABIN

EDITORA: 34 (216 PÁG., R$ 49)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.