Festival Mantiqueira discute traumas sociais e políticos

A função da memória na atividade do escritor gerou diferentes interpretações nos debates do 7º Festival da Mantiqueira, evento literário ocorrido em São Francisco Xavier, um distrito de São José dos Campos. De um lado, a lembrança como o ato de reconstituir um fato aparentemente escondido no consciente e cujo retorno chega a provocar bem estar. De outro, a memória reprimida de acontecimentos dolorosos, cujo esquecimento parece servir como um alívio para situações limite.

No primeiro exemplo, encaixam-se os autores da primeira mesa do evento, realizada na manhã de sábado, 5. Daniel Mundurucu, Ilan Brenman e Reginaldo Prandi, especializados em narrativas infantojuvenis, reuniram-se para contar como nascem as histórias que ajudam a formar novos leitores, a fim de compreenderem e respeitarem a diversidade cultural do País.

Em determinado momento da discussão, Brenman comentou sobre um fato curioso envolvendo uma de suas obras. “Publiquei um livro sobre fatos envolvendo uma tartaruga e, ao mostrar a narrativa para a minha mãe, ela parecia conhecer bem a história”, comentou. “Na verdade, ela me fez ver que eu passara por um acontecimento semelhante quando era pequeno, um fato do qual não guardara nenhuma lembrança e que surgiu inconscientemente no momento da escrita.”

Essa mesma narrativa como forma de escoamento de vivências gerou outro comentário em um debate posterior, o que uniu o escritor Bernardo Kucinski e o historiador Daniel Aarão Reis. Ambos tratam em sua obra de um momento negro na recente história brasileira, o golpe militar de 1964, mas por diferentes gêneros.

Kucinski é autor de dois livros de ficção (K. e Você Vai Voltar Para Mim), que trazem detalhes autobiográficos (especialmente o primeiro) ao retratar aqueles anos de arbítrio. “Eu pretendia escrever algo de ficção, mas, de repente, pus para fora o que estava entalado dentro de mim”, conta o autor, que atuou como jornalista durante o período. “Mas meus livros não têm um interesse político pedagógico, pois não trabalhei com documentos, apenas com a memória, o que me deu total controle do processo criativo.”

Foi a deixa para Aarão Reis, que foi preso político na ditadura, refletir sobre a forma como os homens cuidam do histórico de sua trajetória. “As sociedades sempre elaboram a sua memória”, afirmou. “Mas elas preferem quase sempre produzir o silêncio, incentivar o esquecimento, depois de uma fase traumática.”

Ele lembrou que a ditadura brasileira não foi tão violenta como as da Argentina e do Chile, o que fez surgir, nos anos 1980 e 90, no Brasil, uma tendência em considerar os anos de chumbo um episódio encerrado. “Como foi um período sinistro, era melhor não falar mais sobre isso”, completou.

Kucinski reforçou o argumento, ao se lamentar de que a “alma brasileira não quisesse mais saber do assunto”. “É como se a ditadura dos anos 1970 não tivesse traumatizado a nossa sociedade como um todo, apenas alguns setores. Afinal, houve o milagre econômico, a violência urbana era controlada e a situação era mais contornável.”

Com isso, no entender dos dois artistas, a ferida ainda está aberta. “Para mim, a ditadura ainda não acabou”, disse Kucinski. “Ainda não consegui enterrar minha irmã, que continua desaparecida, e não há, nesse País, uma pedra com os nomes das vítimas lapidados. Para completar, nenhum general foi punido pelos atos de barbárie, ao contrário do que aconteceu na Argentina.”

E Aarão Reis reafirmou sua tese de que os militares, na época do golpe, foram apoiados por importantes bases civis, como a Marcha da Família. “Eles não foram os únicos artífices da ditadura”, comentou.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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