E a Mostra Aurora decolou segunda-feira, 27, à noite, em altíssimo nível, com um belo filme mineiro de Afonso Uchoa. A Vizinhança do Tigre é definido no catálogo da Mostra de Tiradentes como documentário. No debate realizado na terça-feira, 28, pela manhã, o próprio diretor referiu-se à potência ficcional de seu filme.
Conceda-se – A Vizinhança é um filme nas bordas. Uma ficção nas bordas do documentário? Um documentário nas bordas da ficção?
Uchoa traz a periferia para o primeiro plano. Não é mais um diretor de classe média, teorizando, cheio de boas intenções, sobre a exclusão social. Uchoa fala daquilo que conhece. Demorou quatro anos para fazer o filme. Filmou 130 horas, das quais tirou um longa econômico de 95 minutos. O tema embutido em toda a programação da Mostra de Tiradentes, e não só na Mostra Aurora, são os processos audiovisuais de criação. Modelos alternativos ao cinema narrativo dominante no circuito comercial (e que grandes autores subvertem, é bom lembrar).
Falou-se muito, no debate, sobre o processo de criação da Vizinhança. Os personagens são garotos da periferia. Representam eles mesmos. Improvisaram cenas, e mesmo as cenas improvisadas foram repetidas – um take chegou ao recorde de 90 repetições -, até que o diretor se desse por satisfeito. O método pode ter muito de improvisado, mas a ambição de Afonso Uchoa é uma obra dramaturgicamente acabada. E isso ele conseguiu.
O arco do filme começa com a exposição dos jovens em seu habitat. Seguem-se cenas que o diretor define como performáticas. Os jovens de periferia criam representações – personas deles mesmos, e são tipos durões, que exibem a masculinidade como uma arma. Batem e arrebentam, ou pelo menos fingem. São bons moços. Na mesa, dois debatedores – ambos atores – contaram como o filme mudou a vida deles. O arco dramático vira tragédia na construção de Juninho, o personagem mais forte de todos. Juninho está preso. Eldo, outro garoto, morreu. De tuberculose. Há uma dedicatória para ele, no final.
A Vizinhança do Tigre – onde está o tigre? Está no interior desses jovens. É a natureza selvagem, a revolta contra as condições adversas, que eles precisam domar. O final vem ao som de um rap dos Pacificadores, de Brasília – Eu Queria Mudar. E a letra: “Eu queria mudar (quatro vezes)/O meu mundo me ensinou a ser assim, fazer a correria, os cana vim atrás de mim e/Aprendi a ser esperto, aprendi a meter fita, no meio da malandragem solto fumaça/Cresci numa quebrada onde não pode dar mole, onde amigo e confiança não há/Eu queria mudar…”.
Como a letra do rap, o filme denuncia a exclusão. Mas denuncia também a facilidade com que o jovem de periferia é demonizado. Poderia ser bem-intencionado, e só. É forte. E, segundo depoimento da própria equipe, por mais que o processo envolvesse a criatividade de todo o mundo, o filme é obra do diretor. Houve momentos em que Afonso Uchoa ficou sozinho no set, filmando com seu técnico de som. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.